27 de abril de 2013

[305] Episódio 2 – Um achado e um perdido



No episódio anterior, Catarina era atormentada enquanto dormia, pois estava em estado de sonhos chorosos. Quando de repente acordou com as cicatrizes que não eram irreais.
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       Caminhando pela areia da praia com Alex (ainda seu marido naquele dia) já há uns quinze minutos, aos poucos iam se distanciando das barracas de beira-praia em que nós costumávamos nos acomodar. Ao longe, os dois avistam uma figura de cabelos negros e cacheados totalmente desgrenhados pela brisa. Esse era Martin, amigo de Alex desde o ensino fundamental.

       Além de Martin, havia uma criatura minúscula e um livro intitulado “Histórias Extraordinárias”. Ambos estavam sobre seu colo.

       Enquanto Alex e Martin conversavam sobre o motivo dele estar ali, sozinho, (no sentido de estar sem uma companhia humana, apesar de que um gato e um livro substituem com enorme eficácia uma pessoa) Catarina não tirava os olhos da criatura, que era um lindo gatinho preto, e esse correspondia ao seu olhar. Aguardando com paciência seu marido encerrar o assunto com seu amigo, ela interveio e questionou sobre o paradeiro do dono do gato; Martin simplesmente pegou o gato delicadamente e o depositou sobre as pernas dela que estavam estiradas sobre a areia:

- Aqui está a dona do gato preto! Você!
- Eu?! – perguntou ela, dissimulada e cheia de alegria. – Mas qual é o nome dele?
- Humm... Escolha você!
- Esse livro que você está lendo é bom mesmo? – Catarina adiava o assunto acerca do nome.
- Eu gosto muito, quer dar uma olhada enquanto continuo a conversa com o meu amigo que parece enciumado e um pouco desconcertado com essa situação? – Martin sugeriu com uma piscadela.

       Catarina então pegou o livro, folheou primeiro, cheirou como se tivesse iniciado um ritual íntimo para só depois começar a leitura, que era uma coletânea de contos, introduzida com um conto intitulado: O gato preto. Durante o tempo em que Alex e Martin ficaram conversando, ela adentrou profundamente no mundo obscuro de Edgar Allan Poe, e, de vez em quando, soltava gemidos de sustos e pavor.

       Anoitecera e Alex percebeu o quanto estava tarde e quanto tempo ficara longe do amigo, e, antes de se despedirem, Catarina anunciou toda orgulhosa:

-  nome dele será Edgar!

       Os dois homens apenas consentiram e deram “até logo” um ao outro.


       Um trovão a trouxe de volta ao seu apartamento, que estava iluminado apenas por chamas dançantes das velas espalhadas pelo chão, breve momento de alteração que a falta de energia proporcionara. E, nesse momento, recordou também que Edgar estava sumido. Só espero que ele não tenha ido mendigar comida aos vizinhos.

       Já que a chuva lá fora a impedia de aproveitar a Cidade, caminhou até a sala e seus dedos percorreram os livros organizados na estante, arrancou Crime e Castigo de Dostoiévski a fim de aprender e investir um caráter introspectivo no seu romance. Mais uma vez iniciou seu ritual antes de ler o livro e, enquanto o folheava, uma fotografia caiu no chão. Duas faces bem juntas, quase que somadas uma à outra pelo beijo dos dois seres presentes na fotografia representava o seu rosto e o de Martin.

       Enquanto isso, Edgar perscrutava o ambiente. Andava lentamente, farejando como se fosse um cachorro investigador de casos macabros.


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Imagem:
The lovers, de Rene Magritte

18 de abril de 2013

[407] Episódio 5: Diário de Um Detento Três

Você sabe quando está prestes a fazer a maior merda da paróquia. Sempre sabe. Algum fio de nylon invisível liga todas as merdas possíveis de acontecer na sua vida e você tropeça nesse nylon toda hora. Tem algo que te puxa, que te prende. E você vai, claro. Eu aposto que você não se lembra da primeira vez que comprou Yakult naquela padaria. E você compra há muitos anos, é um relacionamento especial. Eu aposto que você não lembra se o cobrador do ônibus que você pegou de manhã tinha um brinco na orelha. E você pega esse ônibus todos os dias. Mas se eu perguntar sobre a primeira vez que viu essa pessoa mesquinha que divide a cama com você, ah, você vai lembrar. Com riqueza de detalhes. Você sabia que iria se apaixonar? Que iria namorar, casar, ter filhos? Então  por que diabos, dentre tantas memórias plausíveis, ficou justamente essa? Você sabia seu futuro? É o que eu te digo. O nylon amarrou teu burro nesse toco.

Antes de mais nada, eu não sou contra esse papo de amor romântico Acho todos os casais mesquinhos em sua mesmice, nos seus bancos de praça, nas suas vidas vigiadas, mas amo o amor. Amantes estão para amor como brócolis num molho branco. Detalhe. A verdade é que ninguém nunca me levou ao cinema e falar que não me importo é uma maneira de disfarçar minha inoperância sentimental. Mas sempre me importei. Sempre sofri com os namoradinhos nas praças, como já desejei chuvas torrenciais, feriados em quartas-feiras, como já aticei cachorros de rua em cima dessa gente melosa... gente mesquinha, que necessita um do outro e mais nada. Deviam ser infelizes e cinzas, como eu, deviam deixar o amor em paz, sem maculá-lo. Mas deixam? Não deixam. Flertam com ele, usam, enfiam-se órgãos adentro, esculhambam e escarafuncham, depois caem no desuso, nos destroços, no litígio e na pensão alimentícia.

Eu nunca tinha verbalizado isso, sabe, até acender este meu terceiro Camel na porta do prédio. Joguei a guimba do segundo cigarro no chão e uma menininha de seus 4 anos pegou e jogou no lixo, fazendo aquela cara de reprovação absoluta que só cidadãos de 4 anos sabem fazer. Essa criança veio de um lar onde as pessoas sabem que é feio sujar a cidade. E eu era parte da família do "foda-se, a cidade já está suja". Nesse momento, eu sabia que queria ter uma filha. Minha filha também jogaria no lixo as guimbas de cigarro que eu não fui capaz de jogar.

Ia me levantando da calçada pra não sujar a roupa, pensando em que nome daria a uma filha de Danilo, quando um rapaz estranho me estendeu a mão. Aquilo era tão toscamente cavalheiro e pensar assim me fez perceber o quanto essa cidade me transformou numa boçal. Mãos estendidas sempre me fudiam e eu aprendi a fugir delas. Pra ser uma aborígene completa só faltava um colarzinho de dente. Não fugi dessa vez porque todo o dia estava estranho como esse branquelo na porta do meu prédio. Eu comprei um batom na butique. Passei uma roupa verde clarinha, que devia estar guardada na minha gaveta desde a Revolução Industrial. Comi brócolis. Era o fim dos tempos.

Era minha saga, esperando Danilo na porta do Edifício Cinza. Eu, minhas notinhas de 10 reais, o moço magrelo, a catadora de lixo. E o fio de nylon. Os olhos azuis de Danilo não me deixavam dormir. Os olhos azuis de Danilo me fizeram comprar um cartão de 20 unidades logo assim que saí do banco com meu seguro-desemprego no bolso. Minha boca no telefone beijava os olhos azuis de Danilo.

Na carteira, uma das compras mais preciosas da minha vida inteira. Dois bilhetinhos amassados do cinema. Eu sentia o fio do nylon da minha meia arrebentada avisando que ia dar merda, mas ignorei, eu sempre ignoro.

Quando avistei Danilo, contei mentalmente todos os bancos da cidade onde iríamos nos sentar.

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Ártemis - noite do primeiro dia

17 de abril de 2013

[106] Episódio 5 - The bottom feels so much better than the top.


Começou a beber com gelo e tônica, mas, no final, já bebia puro e sem nada. Fez por insistência da televisão:

Por que todas as bêbadas da televisão brasileira bebem gim? E tônica? Quem bebe tônica? Isso lá é coisa de Brasil? Brasileiro nem cachaça toma mais. Brasileiro tá russo, bebe vodca. Brasileiro tá ruço. A coisa tá assim: as senhoras abandonadas, o tomate disparando e o governo nem aí, com desculpinha. E as domésticas conquistando seus direitos. Não quero rogar praga, mas dou meio ano e tá valendo mais a pena trabalhar em troca de casa e comida. Bem tá o mendigo, ganhando um prato. Qualquer hora vale mais que a minha aposentadoria. Mais um copo desses, e saio por aí pedindo também, nem que seja um pouco de atenção. Mas não, a velha não é direta. A velha resmunga sozinha, embriagada, nonsense pela casa, sem ninguém ouvir. Quando pode ser ouvida, quando vai levar a algum lugar, tem medo. Carrega um monte de melancia, mas não pergunta nada. Todos esses anos na cara, bem poucos pela frente, e nem para se fazer de louca e matar a curiosidade. Ninguém vai julgar mesmo: tadinha, tá velha. Senil. Caducou. E se chegar nos ouvidos da família e não me deixarem mais morar sozinha? Aqui, ó, para eles. Sempre fiquei abandonada e vão querer me tirar daqui se eu caducar? Não mesmo. Aí que eu vou começar a me divertir. Botar fogo na casa. Mais de setenta anos certinha me deixaram sozinha. Tanta coisa que não aproveitei e hoje virei um nada, covarde, parada, uma velha trocando as palavras e trançando as pernas bebendo uma coisa ruim porque viu na tevê. Nan, you’re a window shopper. Sempre olhei e nunca comprei. É hora de tomar cachaça, tocar todos os interfones, perguntar tudo que quero saber, ligar e mandar todos à merda e dizer que não, não vou deixar minha casa e que estou muito bem sozinha. Chega disso.

Saiu de casa. Na calçada, tropeçou nas próprias pernas. Caiu. A poça de sangue começou a aumentar ao redor da cabeça.

6 de abril de 2013

[204] Episódio 4: A hóspede


Ele ainda não sabe, mas está ficando careca. Uma clareira começa a se formar no topo da cabeça; queira ou não, vai acabar se parecendo com um franciscano. Talvez antes disso se renda e decida raspar os tufos de cabelo que ainda não abandonaram o posto. Se ele pedisse minha opinião, era o que eu o incentivaria a fazer: diria que o crânio dele tem um formato interessante, e apostaria que ele ficaria melhor sem a massa preta semelhante a um poodle de médio porte que hoje esconde seu rosto. Mas ele ainda não sabe de nada e, se soubesse, duvido que me consultaria sobre alternativas estéticas.

A clareira começou em um ponto de difícil acesso, praticamente impossível de detectar no espelho do banheiro. Alguém teria de avisá-lo, mas a verdade é que ele não tem saído muito: até mesmo as compras do supermercado são feitas pela internet, e os entregadores não perdem tempo com fregueses que não dão gorjetas. A garotinha que sempre o visita não apenas é bem mais baixa do que ele, mas está interessada demais em si para notar qualquer mudança em outro lugar que não seja o próprio corpo. Se estivesse nascendo um chifre reluzente de unicórnio a menina não veria, ou não daria a mínima. Já eu, a única que sei, sou muito tímida para dizer qualquer coisa que possa desagradar meu anfitrião.

Ou, ao menos, é o que penso agora: até ontem eu me esforçava para que ele sequer soubesse que estava me recebendo. Calada e invisível como sou, consegui permanecer no anonimato completo por quase um mês. Não estou aqui para me gabar, mas ser tímida tem lá suas vantagens - se não nos relacionamentos interpessoais, ao menos como estratégia evolutiva. E eu teria conseguido me esconder por ainda mais tempo, não fosse nosso encontro desastrado na noite passada. Ele estava distraído, eu fui pouco precavida: sim, uma confluência de fatores a que poderíamos chamar destino.

A madrugada estava sendo difícil: já passava das três da manhã e nós dois estávamos tendo problemas para dormir. Ele estava preocupado em cumprir o ultimato do “devorador de almas”; termo cunhado para insultar o homem que havia ligado quatro vezes mais cedo ao longo do dia, cobrando um trabalho que, aparentemente, já deveria estar pronto há mais de uma semana. Se não entregasse o prometido até segunda-feira, o adiantamento previsto seria cancelado, “os R$ 5,00 que esse puto me paga por página”. E a luz havia acabado pouco depois da meia-noite - um verdadeiro pesadelo para quem prefere trabalhar de madrugada. Irritado demais para dormir e impossibilitado de trabalhar às vésperas do prazo final, dedicava-se à minuciosa arte de arrancar cabelos da cabeça e queimá-los na vela acesa ao lado da cama. Se ele soubesse que está ficando careca provavelmente não procuraria outra coisa para fazer, mas a ignorância às vezes é um benção.

Quanto a mim, não conseguia dormir porque estava com fome. O dia havia sido difícil: meu estômago não tinha lembrança da última vez que algo passara por ele. Como choveu o dia inteiro, não havia oferta de mosquitos. E as baratas realmente sumiram após o veneno que ele espalhou nos ralos ao curso da última semana. Esse talvez seja o grande problema de morar clandestinamente na casa de alguém: a escassez de recursos. Não é como se eu estivesse esperando um convite para jantar, mas se o apartamento continuasse estéril do jeito que estava não levaria muito tempo até que ele voltasse a morar sozinho. O que seria uma pena, já que, modéstia a parte, sou uma excelente companhia. Calada, pouco espaçosa e, sobretudo, boa ouvinte.

Unidos pela insônia, nossos caminhos se cruzaram no escuro da sala. Ele havia estabelecido uma rota até a próxima cerveja na geladeira antes de queimar o resto da franja, eu estava perseguindo o primeiro inseto que via em dois dias, uma espécie de besouro marrom. Insosso, mas melhor do que nada, já que me restituiria as forças. Ele notou algo frio entre os dedos do pé, eu entrei em desespero: iria ser esmagada por aquela desavisada coluna de carne. Quando ele levantou o pé para checar o que quer que fosse que lhe havia feito cócegas entre os dedos eu já estava atrás da mesa, tremendo como nunca. Mas naquele encontro trágico ele ficou com uma parte de mim. Quer dizer, literalmente. Na hora do susto acabei deixando parte da minha cauda para trás, contorcendo-se no chão.

Quando a luz voltou e ele finalmente descobriu o “presente” que eu havia deixado, começou a sentir-se culpado. “Não dói”, eu quis dizer, “a culpa também foi minha”, “eu sou ansiosa por natureza, são meus genes pré-históricos”, e eu sentia que o conseguiria consolá-lo com o papo sobre o destino, mas de nada adianta fazer planos quando se é tão tímida quanto eu. Ele finalmente sabia que tinha companhia, e tentou me achar em todos os cantos da sala. Mas a verdade é que meu sistema nervoso não está acostumado às atitudes amigáveis: esconder-me é um impulso mais forte do que qualquer política de boa vizinhança que eu decida seguir.

Foi apenas no dia seguinte, no banheiro, que consegui juntar forças para cruzar a parede enquanto ele escovava os dentes. Ele sorriu para mim, uma montanha de espuma branca escorrendo pelo queixo. “Bom dia, Cotoco. E desculpa por ontem, não vi que você estava no caminho.” Naquele momento eu percebi que havia sido batizada, e que ter um nome era o meu equivalente a ter a chave para o apartamento daquele edifício cinza. Sequer pensei em discutir: Cotoco estava ótimo. Cotoco, a hóspede. Deixe as janelas abertas, por favor: as manhãs me dão fome. Daqui do alto poderei acompanhar a calvície dele, exceto se o processo for muito lento: a coisa toda pode exceder minha expectativa de vida, mas é o tipo de risco que terei de correr. Bem, que sera sera. Inclusive uma cauda nova, daqui a umas três semanas. É sempre bom mudar o visual.

4 de abril de 2013

[505] Episódio 5: Tomadas Frouxas

Capa do álbum "Desvio de Conduta", da banda Strike


Conectar a tomadas frouxas os plugues da luminária, da tevê, do videogame, do liquidificador. Uma incrível terapia.
Eu poderia simplesmente trocar todas as tomadas do apartamento. Substituir pelo novo modelo, daquele de três pinos. Mas qual a graça de não exercitar a paciência todos os dias?
É engraçado observar as tomadas. Você pode me achar um louco — aliás, se você me acha perfeitamente lúcido até aqui, peço que leia minhas histórias novamente —, mas é impressionante como elas se encaixam perfeitamente, mesmo com seus defeitos.
Permita-me explicar: para se estabelecer a conexão de energia, os plugues e as tomadas frouxas precisam de uma posição correta: nem muito enterrados um no outro (a ponto de os pinos do plugue desaparecerem) ou nem muito longe. Um meio termo bizarro e difícil. E quando o problema é um plugue torto? Tão divertido quanto. É quase como montar um quebra-cabeça, com a diferença que isso no fundo tem uma utilidade. Realmente fantástico!
E nós, seres humanos que procuramos o amor, uma alma gêmea, a metade da laranja, a tampa da panela... Como achar algo que nos completa se o que nos completa normalmente é terrivelmente distinto do que realmente somos? Nada se encaixa perfeitamente, nunca se encaixará. Somos peças com defeito. O defeito, a imperfeição, é isso que faz cada um de nós ser especial. É isso que nos separa, isso que nos junta. Somos plugues tortos procurando tomadas frouxas. Em algum momento inesperado, a conexão acontece.
Que merda de pensamento é esse? Espero que a energia volte logo, preciso voltar a internet... Droga de chuva.

3 de abril de 2013

[201] Terceiro Episódio: Lc 18, 16


ocava-se o canto final e eu, em fila com os ministros, acólitos e coroinhas, saía do presbitério e me posicionava em frente ao altar para a genuflexão, tudo muito bem sincronizado, como manda o figurino. Ao ajoelhar-me, porém, senti dois puxõezinhos na minha estola, que só foram suficientes pra tirá-la levemente do lugar e fazer com que eu olhasse para trás na tentativa de entender porque alguém a estaria puxando enquanto eu me ajoelhava.

            Virando a cabeça, vi logo em primeiro plano o menino João, com o rostinho banhado de lágrimas, fazendo aquela cara feia que as crianças fazem quando tentam engolir um choro que vem em doses demasiadamente escandalosas; no segundo plano, equilibrando com um toque cômico a dramaticidade do primeiro, estavam os pais do pequeno menino, que foram atingidos pelo meu olhar enquanto corriam (com o máximo de discrição que se pode ter, aliás, quando se corre pelo corredor principal de uma igreja durante a Missa dominical) e pareciam temer que a pobre criança, ainda desprovida do bom senso dos adultos, pudesse ter despertado a fúria deste sacerdote que, não podendo recair sobre seu causador direto, cairia naturalmente sobre os seus genitores.

            Acolhi o menino com um de meus braços e consegui apenas entender umas palavras soltas do que ele tentava me comunicar: intenção, morreu, céu, papai, disse. Levantei e tomei-o pela mão, passando ele então a compor a nossa curta procissão de saída até a sacristia.

            - Já que você está triste, eu vou deixar você sentar na cadeira do padre enquanto eu tiro esse monte de roupa, tá bom?

            Ele assentiu com a cabeça, enquanto esfregava a mãozinha nos olhos muito vermelhos. Ficou ali balançando as perninhas que não podiam tocar o chão, perdido naquela cadeira enorme de estofamento vermelho que devia ser usada no presbitério há alguns anos atrás. Parecia um adulto em miniatura a julgar pelo modo de vestir: calça social preta, com sapatinhos também pretos bem polidos, um suéter cinza sobre uma camisa social de manga longa xadrez e os cabelos impecavelmente partidos ao meio. Eu já conhecia os pais de João; são de participação ativa na vida paroquial e, gozando de uma condição social bastante favorável, não só contribuem com seu tempo e energia, assim como com seu dinheiro para o bom funcionamento das atividades eclesiais. Fui convidado a jantar na casa deles na semana em que cheguei e talvez isso desse intimidade ao menino para me interceptar na saída.

            Pedi a um dos ministros que avisasse aos pais para que não se preocupassem conosco e, já sem os paramentos, fui conversar com o menino.
            - Frei, o Maninho – este era o nome de seu pequeno cão, com o qual dividia o quarto – ficou doente de repente e morreu. Eu pedi papai pra botar o nome dele nas intenções da missa, mas ele falou que não pode. Que bicho quando morre não vai pro céu – e afogava-se nos soluços.

            Não nos ensinam na Filosofia, na Teologia ou em algum outro curso o que devemos falar numa situação destas. Citar Aristóteles e dar-lhe uma explicação pautada na tipologia das almas não traria nenhum conforto. Lembro-me de limpar uma lágrima que já se ia jogar do meu olho, com o cuidado necessário para que João não percebesse que tinha ali um companheiro de tristeza. Eu tinha a responsabilidade de assumir um papel naquele momento: o sacerdote é aquele que, na hora das perdas, orienta com sabedoria e sobriedade – ou pelo menos é assim que um grande número de pessoas nos enxerga, como detentores de um dom inato que vem embutido na vocação, a palavra. Mas a verdade é que, geralmente, mesmo que não tenhamos oportunidade de admitir, sentimo-nos tão impotentes e perdidos como todos os outros. Aliás, talvez até um pouco mais impotentes, pois padecemos de nossa dor particular sem poder demonstrá-la de uma maneira mais pungente e também pesa sobre nossos ombros a responsabilidade de amenizar a dor de quem nos rodeia.
           
            Mas o menininho chorava e era preciso falar. Eu não me importaria de mentir-lhe naquele momento para amenizar sua dor. Uma pequena mentira, dizer que Maninho foi pro Céu e que eles irão se encontrar novamente. Ah, na verdade, se seus pais não tivessem negado a oportunidade de redenção ao cão, seria este o meu discurso. Não o executei para não complicar-me teologicamente. Ser acusado de heresia ainda hoje é problema grande nas fileiras da Igreja e não quero submeter-me a uma investigação doutrinária por parte da Diocese.


           – João, é mesmo verdade que o Maninho não vai pro Céu. Mas seus pais não sabem é que existe um jeito de resolver isso. Se você não se esquecer dele, ele continua dentro de você. Daí quando você for pro Céu, ele vai junto. Agora você não vai mais ouvi-lo latir ou jogar a bolinha pra ele pegar, mas vai lembrar de todas as vezes que brincaram juntos, porque ele está dentro de você. Será que você consegue deixar ele aí dentro até você entrar no Céu?
          – Consigo sim, frei!

            Entreguei-o logo aos pais, dizendo-lhes que seu filho tinha um grande coração, que às vezes corações assim transbordam protocolos e que ele de modo algum havia me incomodado. Ora, se o próprio Jesus deixou-se acessível aos pequenos, que sacerdote poderia lhes negar acesso?

            Agora, já noite, fechado em meu apartamento, recordo do abraço final que com João me agradecera pela direção espiritual mirim. Meu corpo, já tão desacostumado a contatos físicos, é propício a ser grato por tais demonstrações de afeto. Afeto, aliás, é artigo de luxo para mim, que recebo respeito e cordialidade em proporções generosas. Imagino o menino deitado entre seus pais, na cama do casal, enquanto a dor não passar. Os calores trocando de corpo, as respirações próximas, três pessoas unidas pela dor de um deles, pois tinham o dever de superar qualquer dor que fosse juntos. E isso, em última instância, é o que os caracteriza uma família.

            E eu, sozinho, fechado, imaginando de onde vem cada barulho, mirabolando uma maneira de fazer contato com algum vizinho, talvez. Quem sabe aproveitar a falta de luz e pedir uma vela emprestada - apesar de que alguém poderia estranhar um padre não ter sequer uma velinha em casa para acender no seu oratório. Mas já é tarde. O barulho da tempestade me sugere um dilúvio lá fora.
            Na Cidade sempre que chove, chove assim, chove muito, chove forte. Como se todas as lágrimas que os corações de pedra daqui não se permitem derramar fossem derramadas pelo céu em remissão à dureza do espírito de cada um. Pelo menos nesta hipótese, o céu tem piedade de nós. 

2 de abril de 2013

[403] Episódio 6: Desabitando hábitos


“Estou com sede de mudanças mas não quero arrastar os móveis nem desentortar os quadros. Quero desabitar meus hábitos.” (Marla de Queiroz)



- Vidinha chinfrim, pensou Mirella.

Entra ano, sai ano e continuava naquela habitual tortura de se enfiar num escritório cinza para depois ir para sua casa, habitada num edifício cinza. Cinzas eram as borras de cigarros deixadas em seu lixo, cinzas eram seus pensamentos cheios de hábitos e manias. Cinzas eram as nuvens que desenhavam o céu naquela tarde chuvosa de um feriado sem graça.

- Quem manda ser burra. Depois de se endividar por causa de homem tem mais que ficar enfurnada em casa só imaginando onde poderia estar se não estivesse tão dura!

Duras escolhas. Duras consequências. 
Era um dedo podre para homens ou então seu cupido tinha miopia. 
Estava sozinha novamente. E, decididamente, Mirella não sabe ficar sozinha.

Levantou-se da cama e foi até a escrivaninha para ligar o computador. Fazia um tempo que não navegava na internet em busca de entretenimento. Havia desistido das redes sociais e dos sites de relacionamentos. Quem sabe teria ali, naquela máquina cinza metálica, alguma alegoria para seu dia. Deixou-o carregando e foi até a cozinha pegar um café.

No caminho, ligou o rádio. Ouvir música era um de seus hobbies. Coincidência ou não, tocava naquele instante justamente uma de suas prediletas! Seria um bom sinal?

Saracoteou o esqueleto um pouco e já voltou mais animadinha para o quarto. Clicou na página da rede social para acessar seu perfil. Precisava lembrar a senha! Qual era mesmo? Tentou por alguns segundos até que conseguiu. A página abriu e ela se assustou com a quantidade de convites para aceitar amizades. Engraçado, de onde tiraram que aqueles seres eram seus amigos? Tinha gente ali que ela nunca vira em sua vida. Foi descartando um por um. Repentinamente um nome chamou sua atenção. Nunca foi muito boa para guardar nomes. Era ele sim, conhecia bem o dono daquele sorriso. E bastou apenas olhar por um instante aquela foto que um rebuliço acometeu seu estômago feito borboletas revoando e a fez viajar no tempo...

Um tempo de sua conturbada adolescência quando os sonhos eram confundidos com a realidade e havia certezas absolutas. Uma vida cheia de aventuras inconsequentes que  riscam cicatrizes na alma. Momentos irrecuperáveis que deixam a ilusão de que tudo poderia ser diferente se...

Era ele sim: Bentinho. 

Um pouco diferente, óbvio, marcado pelas mudanças do tempo; cabelos grisalhos, pele cheia de sinais da idade, um pouco acima do peso. Não mais Bentinho e sim agora Sr Benedito. Só uma coisa não havia sentido essa passagem: o sorriso, que era inconfundível! Mirella não queria admitir, mas Bentinho tinha o dom para desestabilizá-la. Quando jovens tudo era permitido. Viveram momentos intensos, proibidos, cheios de paixão. Ela se entregou de tal forma que não mediu consequências em suas atitudes e numa cidade pequena, sabe com é, as notícias não tem tempo de serem digeridas. Virou chiclete nas bocas fofoqueiras onde as palavras eram cuspidas. Acabou achincalhada e desprezada  por seus pais. Saiu de casa e quando buscou abrigo nos braços daquele que acreditava que a aceitaria, sofreu o duro golpe da indiferença. Para piorar a situação descobriu uma gravidez indesejada que foi resolvida na base da clandestinidade dos frios quartos de clínicas obscuras que cumpriam o “duro” dever de aniquilar vidas. Não tinha mais o que fazer naquela cidadezinha de merda. Caiu no mundo e nunca mais olhou para trás. Jurou esquecer tudo e seguir em frente. 

Seria feliz apesar de tudo. O passado não lhe pertencia mais, até aquele momento.

A curiosidade foi maior que o desejo de desprezo. Aceitou o convite. Queria bisbilhotar sobre a vida dele e descobriu que estava casado, com filhos e bem sucedido. Por que essa aparição agora? O que a vida tentava lhe mostrar? Tudo que ela mais desejava era esquecer seu passado. Fizera questão de apagá-lo sem sequer sentir remorso, há não ser pelo aborto, retirando do mapa de sua vida aquela cidadezinha hipócrita.

Tomou um gole do café que já esfriava. 

O gosto da nicotina avivou em sua boca. Salivou vontade de fumar. 

1 de abril de 2013

[305] Episódio piloto - Devaneios emergentes


“Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
 Libertar-se-á... nunca mais!”
Edgar Allan Poe, O Corvo. trad. Fernando Pessoa - 1924
      
      Suas únicas malas eram: os livros, algumas peças de roupas e seu gato preto, Edgar. Havia também a constante tristeza entranhada em seu ser, mas isso ela tentou deixar para trás, o problema é que ela não tinha querer.

       Diante do prédio acinzentado onde seria sua nova moradia, fez uma prece para conseguir continuar sua vida de maneira tranquila, depois de tudo que lhe havia acontecido. Antes de entrar e seguir até seu apartamento, uma memória antiga lhe invadiu e a fez ficar estática por alguns estantes, pois havia lembrado que num edifício não muito diferente desse, havia sido uma pessoa muito feliz, junto do seu ex-marido, até acontecer o que aconteceu. Afastando-a do breve momento de nostalgia, Edgar soltou um miado meio desesperado.

       - Eu sei Edgar. Você está com fome, vamos entrar e conhecer nosso novo lar.

       Seguindo pelo corredor em busca do número 305, Catarina ia toda torta segurando a bolsa com as roupas e uma caixa bastante pesada com seus livros. O gato a acompanhava calmamente.

       - Pronto, chegamos! - arriscou ela uma voz cantante de falsa alegria, que Edgar ignorou e a ultrapassou para entrar no apê.

       Assim que abriu a porta Catarina ficou encantada com a decoração do antigo inquilino: uma parede da sala estava pintada de preto com um enorme quadro do Magritte, coincidentemente, a mesma tatuagem que ela possuía nas costas. A sala também estava cheia de estantes que ocupavam quase todo o ambiente. A cozinha era linda e retrô, com enfeites delicados e móveis arcaicos. Andava e verificava cada canto do apartamento, quando encontrou seu acalento: uma garrafa de uísque. Esse morador ia com a minha cara, ainda bem que ele não me conheceu, pois era capaz de tudo sair errado – ela pensou, um pouco desconfiada, e andou a caminho do banheiro.

       Posso ver através do reflexo do espelho um corpo, um corpo com olhos profundos, porém quase adormecidos. Contemplo uma face rosada com uma boca pequena, de lábios finos e, logo acima, um nariz feio e arredondado, como de um palhaço – ou seria de uma louca? Os cabelos são compridos e castanhos, um pouco mais escuros do que os olhos. O corpo. O corpo está protegido por uma pele macia e morena bem clara, quase rósea, que tem ombros largos e caídos – uma expressão de completo fracasso, sem vida... os seios são pequenos e pontudos, a barriga com uma elevação desproporcional, mas com uma cintura ainda muito fina, descendo a região sagrada de um corpo, o órgão da vida, rosado e com pelos, aguardando o líquido necessário para plena felicidade clandestina, roubada por alguns minutos. Através dos olhos, que são o espelho da alma, reflete uma grande angústia, uma dúvida e uma insatisfação crônica – de ser ou não.

       O barulho dos livros despencando no chão acordou Catarina de mais um devaneio e, apesar da nova moradia e de novos ares, os fantasmas do passado iam assombrar Catarina onde ela estivesse. Foi até a sala investigar o que estava acontecendo e viu Edgar tentando encontrar um lugar aconchegante dentro da caixa na qual estavam os livros, agora no chão.

       Depois do dia longo de arrumação, ela e o gato deitaram-se no tapete felpudo que o antigo morador deixara (esse antigo morador era mesmo uma pessoa muito gentil!) e dormiram imediatamente. Catarina passou a noite tendo pesadelos, e o pior deles foi o seguinte:

Dentro de um pequeno quarto imundo, estava ela e um homem deitado, totalmente despido. No chão, ela se retorcia de dor, alisando a pequena barriga que mostrava uma elevação, e, por dentro, um feto pequenino. Espalhado pelo chão, havia caixas de remédios abortivos, da qual ela havia engolido todos os comprimidos atrás de um resultado eficaz – expelir o feto. Matá-lo.

Durante alguns minutos ela parara de se torcer, parecia morta. O homem caminhou até ela e começou a esmurrar o seu ventre. Ainda deitada no chão, o sangue começou a derramar-se por entre suas pernas, que agora estavam banhadas de uma vermelhidão imunda. Com pouca força, ela foi tentando levantar-se, ficando de quatro e, depois, se apoiando somente nas pernas. Caminhou até escorar numa parede e, novamente, o homem a seguiu e começou a esmurrá-la na barriga. Por um instante ele parou, respirando com pesar, mas depois apanhou uma faca que estava entre suas roupas e desferiu golpes novamente contra o ventre de Catarina. Caíra no chão novamente, mais sangue escorria pela sua vagina, ela forçava um parto prematuro com as poucas forças que tinha. Empurrava com força o ser para fora de si, sentiu que saia, escorou-se numa parede quase sentada quase deitada e com uma das mãos tentou puxar o feto para fora. Percebera resquícios de algo na sua mão e vira que arrancara algo que seria o braço. Desesperada, pôs-se a colocar mais força. O feto nascera, despedaçado.

No chão, caiu um ser que não era. A criaturinha, com pouco mais de doze centímetros, estava no chão totalmente coberto por uma gosma nojenta. Ela contemplava o feto com olhos mergulhados em águas salgadas, quase a escorrer pela sua face, e o apanhou nos braços e o aninhou junto ao seu colo. O corpo minúsculo, quebrável por qualquer movimento por mais fraco que fosse, não tinha vida, mesmo assim ela roçava o bico do seio próximo do que seria a boca da criança, caso ela tivesse permitido que se formasse. As miniaturas que imitavam projetos de braços, pernas e mãos, eram acariciadas por ela numa espécie de esperança de trazê-lo de volta. As águas agora corriam pela sua face lavando seu rosto da imundície aparente. Ela soltou o feto no chão com calma, como se tivesse terminado de niná-lo e um movimento mais rude pudesse acordá-lo. Deitou-se do lado dele e assumiu a mesma posição fetal, encolheu-se toda em torno de si, tremia muito e não conseguia parar de chorar. Estendeu sua mão sobre o feto o arrastou para mais próximo de si, abraçou e desejou morrer no lugar dele, tarde demais. Não havia nada que fizesse para mudar o que tinha acontecido, sentia-se muito mal, estava cheia de dor e sentia também muita náusea. Um desejo imenso de voltar atrás tomou conta dela que a fez selvagemente tentar enfiar o feto de volta ao seu ventre, o corpo todo se desmanchando com a força que ela o pressionava contra a vagina.

Do canto do quarto, o homem contemplava tudo como se fosse uma peça teatral, observava com exagerada atenção e mal piscava os olhos. No outro canto com os braços entrelaçados nas pernas balançando suavemente, estava Catarina, o sangue escorrendo sem parar, completamente calma, já quase adormecendo ou morrendo; a dor não a surpreendia mais.

De súbito ela acordou toda suada, completamente nua, com todas as cicatrizes em seu ventre amostra.


Imagem:

Eroticimage, de Frederic Leighton