“Estou com sede de mudanças mas não quero arrastar os móveis nem
desentortar os quadros. Quero desabitar meus hábitos.” (Marla de Queiroz)
- Vidinha chinfrim, pensou Mirella.
Entra
ano, sai ano e continuava naquela habitual tortura de se enfiar num escritório
cinza para depois ir para sua casa, habitada num edifício cinza. Cinzas eram as
borras de cigarros deixadas em seu lixo, cinzas eram seus pensamentos cheios de
hábitos e manias. Cinzas eram as nuvens que desenhavam o céu naquela tarde
chuvosa de um feriado sem graça.
- Quem manda ser burra. Depois de se endividar por causa de homem tem mais que
ficar enfurnada em casa só imaginando onde poderia estar se não estivesse tão
dura!
Duras
escolhas. Duras consequências.
Era um dedo podre para homens ou então seu cupido tinha miopia.
Estava sozinha novamente. E, decididamente, Mirella não sabe ficar sozinha.
Era um dedo podre para homens ou então seu cupido tinha miopia.
Estava sozinha novamente. E, decididamente, Mirella não sabe ficar sozinha.
Levantou-se
da cama e foi até a escrivaninha para ligar o computador. Fazia um tempo que
não navegava na internet em busca de entretenimento. Havia desistido das redes
sociais e dos sites de relacionamentos. Quem sabe teria ali, naquela máquina
cinza metálica, alguma alegoria para seu dia. Deixou-o carregando e foi até a
cozinha pegar um café.
No
caminho, ligou o rádio. Ouvir música era um de seus hobbies. Coincidência ou não,
tocava naquele instante justamente uma de suas prediletas! Seria um bom sinal?
Saracoteou o esqueleto um pouco e já voltou mais animadinha para o quarto. Clicou na
página da rede social para acessar seu perfil. Precisava lembrar a senha! Qual
era mesmo? Tentou por alguns segundos até que conseguiu. A página abriu e ela
se assustou com a quantidade de convites para aceitar amizades. Engraçado, de
onde tiraram que aqueles seres eram seus amigos? Tinha gente ali que ela nunca
vira em sua vida. Foi descartando um por um. Repentinamente um nome chamou sua atenção.
Nunca foi muito boa para guardar nomes. Era ele sim, conhecia bem o dono
daquele sorriso. E bastou apenas olhar por um instante aquela foto que um
rebuliço acometeu seu estômago feito borboletas revoando e a fez viajar no
tempo...
Um
tempo de sua conturbada adolescência quando os sonhos eram confundidos com a
realidade e havia certezas absolutas. Uma vida cheia de aventuras inconsequentes
que riscam cicatrizes na alma. Momentos irrecuperáveis que deixam a ilusão de
que tudo poderia ser diferente se...
Era
ele sim: Bentinho.
Um
pouco diferente, óbvio, marcado pelas mudanças do tempo; cabelos grisalhos,
pele cheia de sinais da idade, um pouco acima do peso. Não mais Bentinho e sim agora Sr Benedito. Só uma coisa não havia
sentido essa passagem: o sorriso, que era inconfundível! Mirella não queria
admitir, mas Bentinho tinha o dom para desestabilizá-la. Quando jovens tudo era permitido. Viveram momentos intensos, proibidos, cheios de
paixão. Ela se entregou de tal forma que não mediu consequências em suas
atitudes e numa cidade pequena, sabe com é, as notícias não tem tempo de serem digeridas. Virou chiclete nas bocas fofoqueiras onde as palavras
eram cuspidas. Acabou achincalhada e desprezada por seus pais. Saiu de
casa e quando buscou abrigo nos braços daquele que acreditava que a aceitaria, sofreu o
duro golpe da indiferença. Para piorar a situação descobriu uma
gravidez indesejada que foi resolvida na base da clandestinidade dos frios
quartos de clínicas obscuras que cumpriam o “duro” dever de aniquilar vidas.
Não tinha mais o que fazer naquela cidadezinha de merda. Caiu no mundo e
nunca mais olhou para trás. Jurou esquecer tudo e seguir em frente.
Seria feliz
apesar de tudo. O passado não lhe pertencia mais, até aquele momento.
A
curiosidade foi maior que o desejo de desprezo. Aceitou o convite. Queria bisbilhotar
sobre a vida dele e descobriu que estava casado, com filhos e bem sucedido. Por
que essa aparição agora? O que a vida tentava lhe mostrar? Tudo
que ela mais desejava era esquecer seu passado. Fizera questão de apagá-lo sem sequer sentir remorso, há não ser pelo aborto, retirando
do mapa de sua vida aquela cidadezinha hipócrita.
Tomou um gole do café que já esfriava.
O gosto da nicotina avivou em sua boca. Salivou vontade de fumar.
O gosto da nicotina avivou em sua boca. Salivou vontade de fumar.
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