23 de março de 2013

[101] Episódio 3: O velho e suas camas.



Oboé, oboé d’amore, corne inglês e 2 clarinetes

Primeiro vem a dor na cabeça, uma dor terrível de alguém que levou uma pancada na cabeça. Logo em seguida os barulhos alcançam os ouvidos, e perturbam, são tantos e de todas as direções e de todos os tipos: gemidos, apitos, berros, batidas, lamentações. Em seguida abrem-se os olhos, que sem foco tentar enxergar o que há naquele lugar. Logo os olhos recuperam-se, e as luzes se transformam em imagens. Célio observa ao seu redor jovens enfermeiras correndo com gazes, ataduras e frascos de remédios. Ele se curva na mesa e consegue olhar seu corpo por inteiro; onde antes estava o uniforme sujo da lama e rasgado, agora via-se ataduras brancas com grandes manchas de sangue, cobrindo seu corpo, e voltas e mais voltas tentando estancar o sangue, que algumas horas antes escorria pela sua perna; perna que também era cortada por grandes pedaços de curativos brancos empapuçados em um liquido negro de odor forte e marcante.

Primeiro veio a dor no braço, uma dor aguda e pulsante que fez com que ele soltasse os primeiros gemidos de dor. Logo veio a dor na cabeça, uma dor terrível e latejante que corria por toda sua cabeça e terminava na testa, inchando por completo sua têmpora. Logo vieram os sons, eram sons baixos abafados pelas pesadas cortinas e pelas janelas de vidro duplo, em seguida o frio, frio cortante da saída de ar que ficava a poucos centímetros da cama; por fim os olhos se abriram, as imagens contorcidas foram se ajeitando se organizando, e logo a imagem das paredes brancas se completaram, Célio olhou ao redor e logo viu um assustado e dorminhoco menino da padaria.   


Trombone

- Onde estou?
- Quem sou eu?
- Como assim?
- Brincadeira seu Célio, é que nos filmes todo mundo acorda dizendo isso, depois de perder os sentidos.
- E eu perdi os sentidos?
- Sim perdeu, o senhor desmaiou na praça, todos ficaram a apavorados
- Todos quem meu rapaz?
- Todos que estavam lá, inclusive vizinhos do senhor que passavam pela praça no momento.
- Sei, meus vizinhos, não sei de vizinho nenhum que pareça gente boa; inclusive meu rapaz tem um lá que vive fuçando as minhas lixeiras, ele pensa que eu não vejo, mas eu já vi sim, sujeitinho esquisito.
- Poxa, o senhor tem até um vizinho padre, uma pessoa de Deus, como o senhor pode pensar assim.
- Pessoa de Deus né? Não sei, tenho minhas dúvidas.
- O servo do Senhor seu Célio, não fale assim, aprendi na minha vida que falar essas coisas dos servos do Senhor é pecado.
- Vida? Pecado? Hora, não seja insolente! Não me diga nada sobre a vive, não se esqueça que eu já vivi o suficiente para saber pra que ela serve.
- Eu sei seu Célio, mas ainda assim, não fale desta forma; e já que o senhor tocou no assunto, me responda, afinal, pra que serve a vida?
- Não vou dizer.
- Por quê?
- Não vou estragar a surpresa, meu jovem! Mas, entenda uma coisa, pecar é viver a vida sem pecar; eu peco, tu vigias, eles invejam; veja que conjugar o verbo pecar é viver.
- Não faz sentido isso seu Célio.
- Faça-me agora um favor, peça um calmante para a enfermeira.
- O senhor acabou de acordar, por que tomar remédios para dormir?
- Não quero tomar os remédios.
- Então por que o senhor quer pedir os remédios?
- Pra você tomar, meu jovem!
Os dois pararam e começaram a rir da situação. Os risos foram quebrados com a entrada de uma senhora de cabelos brancos, vestido azul longo, sapatos azuis escuros, bolsa preta, e grandes olhos verdes regados por uma singela lágrima que escorria no canto do seu olho. Célio observa a mulher parada na porta e diz:
- Olá dor.
- Por que amor? Ela responde.
- Se sem calor por que amor?
- Se só da dor por que calor? Ela pergunta.
- Se sem calor, se és amor, por que horror? Sente-se dor.
O rapaz da padaria se despede e promete voltar no dia seguinte, para ajudar o velho a voltar para casa. Ele sai e deixa os dois sozinhos. 

19 de março de 2013

[505] Episódio 4: A Sétima Arte



            Era definitivo. Eu e Sara estávamos realmente namorando. Ela até me fez trocar meu status no facebook. Era legal isso. Um desajustado social como eu em um relacionamento sério. E ela tentava me ajustar aos poucos, me ajudava. Graças a seu incentivo, eu comecei a realizar diversas atividades, digamos, externas. Ela me levou para a oficina de teatro que participava. Falou que eu precisava “perder minhas inibições” ou coisa parecida. Gostei da experiência e estou exercitando minhas habilidades de atuação. Até comprei uns livros sobre o assunto e passei a assistir filmes com outros olhos.
            Ela me incentivou a ter uma vida mais saudável também. Expliquei para ela que largar o Mc Donald's e as junk foods com entrega a domicílio era muito difícil. Sabe como é, males da Cidade: o comodismo e a falta de segurança. A comida vai até você e não você vai até a comida... Resultado: vou à academia cinco vezes por semana.
            Comecei um trabalho voluntário na livraria onde ela trabalhava como contador de histórias para as crianças. Descobri ali que eu levava jeito para a coisa. Pelo menos era o que os pais das crianças falavam quando iam buscá-las e seus filhos simplesmente não queriam deixar o lugar. Ou talvez eles fossem pais ruins, sei lá.
            O lado bom desse trabalho é que pude conhecer Daniel, filho de Sara, numa dessas “contações”. Nunca vi uma criança tão inteligente na minha vida e isso me assustava. Eu fui uma criança inteligente e perdi boa parte da minha infância por ficar meio que segregado dos meninos “normais”, além de sofrer bullying. Ser burro às vezes tem suas vantagens.
            Quem não estava gostando nada dessa minha nova vida era Monstro. Antes eu passava a maior parte do dia com ele, e com essa mudança mesmo que leve na rotina, ele sentia saudades. O resultado disso? O primeiro dia que eu cheguei a casa foi um inferno: ele revirou meu cesto de roupas sujas e fez suas necessidades em cima da minha cama. Mesmo sabendo que ele não podia responder, gritei num acesso de raiva:
            Pra que você quer chamar mais atenção? Todo mundo já olha essa sua cara horrorosa! — Me senti o pior dono do mundo depois disso.
            Algumas semanas depois, num domingo, estava eu deitado no sofá com Monstro enquanto assistíamos “Perfume de Mulher”, um dos nossos filmes preferidos. O interfone tocou. Fiquei me perguntando quem seria, já que Sara havia me dito que levaria Daniel para passear. Atendi e era realmente ela.
            ― Sara? O que foi?
            ― Espera eu subir, já te digo.
            Rapidamente ela chegou ao quinto andar. Me disse que seu pai estava passando mal e que precisava de alguém com quem deixar o Daniel. Não me deu tempo de protestar nem de desejar melhoras para o seu pai: deu um beijo de despedida no seu filho, fechou a porta e foi embora.
            Fiquei olhando para aquela figura na minha frente. Cabelos ruivos e sardas herdadas da mãe e com olhos castanhos profundos. Vestia uma camisa listrada azul e branca e uma bermuda combinando. Nos pés, um crocs verde limão. Nas mãos uma revista em quadrinhos da Turma da Mônica e uma mochila do Ben 10 nas costas. Seus óculos azuis de aros grossos não negavam: Daniel era um protótipo de nerd aos quatro anos. E eu o fitava, intrigado. Ele não se movia e correspondia o meu olhar, como se me analisasse. Não sabia como fazer contato com ele, ali, na entrada do meu apartamento. Minha única convivência com crianças era na livraria, ou quando visita meus sobrinhos no Natal. Aquilo era muito mais íntimo ― um menino de quatro anos invadindo meu espaço.
            ― Oi ― eu disse, por fim, depois do que me pareceu uns cinco minutos de silêncio.
            ― Ele não morde, né? ― disse ele, apontando para Monstro, que nesse momento farejava alucinadamente a perna dele.
            ― Não, não ― respondi, rindo. ― Bom, sinta-se em casa. Como você pode ver, não tenho muitas coisas pra crianças e...
            ― Uau, olha só isso!
            Ele olhava encantado para minha estante. Seus olhos pareciam brilhar ao admirar tudo aquilo. ― Quantos livros você tem aqui? ― ele perguntou com uma nítida curiosidade em sua voz. Fiquei feliz que uma criança realmente se interessasse por isso.
            ― Deve ter uns trezentos. Você quer que eu coloque sua mochila em algum lugar?
            Sem falar nada e sem tirar os olhos da estante, tirou a mochila das costas e me entregou. Coloquei-a em cima da minha cama. Voltei e ele ainda estava lá. Sentei no sofá novamente. Irritado com a falta de atenção, Monstro começou a latir para Daniel. Foi aí que ele percebeu. Se virou, olhou para mim e sentou na outra ponta do sofá. Monstro subiu e se acomodou entre nós.
            O que eu faria agora?
            ― Hmmm, você quer comer alguma coisa? Tenho biscoito no armário... Refrigerante, talvez?
            ― Minha mãe não gosta que eu coma porcarias...
            ― É, eu sei. Ela também vive brigando comigo por causa disso... ― respondi sorrindo.
            ― Você é o novo namorado da minha mãe, né? Ela gosta muito de você.
            Aquilo me pegou de surpresa. Não sabia o que dizer.  Preferi apenas olhar para ele e sorrir. Ele sorriu também.
            ― Ei, você quer ir ao cinema?
            O rosto dele expressava dúvida. Ele me olhava como se estivesse falando grego. Foi aí que eu entendi.
            ― Espera aí, você nunca foi ao cinema?
            Ele continuou em silêncio. Mas já não precisava falar mais nada.
            ― Bom, então nós vamos.




            Fui ao meu quarto e escolhi uma camisa mais arrumada — tinha que parecer ao menos um adulto sensato para poder andar com uma criança a tiracolo —, fui até as janelas e tranquei-as, não sem antes contemplar rapidamente o céu. Humanos tolos estes da Cidade: chamam isso de céu azul? Se tivessem vindo de onde eu vim...
            Ao sair, Monstro latia, irritado, por ficar para trás de novo. Foi difícil, mas conseguimos chegar ao elevador. Este também demorou a chegar. Ficou algum tempo parado no segundo andar. Pelo que eu ouvi, tinha alguém se mudando pro 201. Disseram-me que era um padre. Mas que diferença isso ia fazer na minha vida de ateu?
            O elevador chegou, a porta se abriu, entramos, apertei o botão que nos levaria ao térreo, e começamos nosso caminho edifício abaixo, em silêncio. Eu o olhava, sem dizer uma palavra. Um sopro de nostalgia entrou pelas minhas narinas e anuviou minha mente. Vi a mim mesmo, aos quatro anos, lendo uma revistinha da Turma da Mônica empoleirado numa cerca. Daniel poderia ser facilmente uma reencarnação minha, um novo eu, meu filho. Sacudi minha cabeça, afastando esse pensamento bizarro, e reparei que já havíamos chegado ao fim de nossa viagem vertical.
            A vida na Cidade se resume basicamente a luta por espaço, terreno, propriedade. Todos querem estar nas áreas centrais. Quando algum apartamento ou sala comercial fica vaga, não precisa-se de muito tempo para preencher essa vacância. Eu dei sorte de conseguir um lugar nesse edifício, e fico muito feliz com isso. Afinal, moro perto de tudo. Andamos apenas dez minutos e dobramos algumas esquinas para chegarmos em frente ao antigo cinema do bairro. O letreiro corroído pelo tempo e com letras faltando não era lá um grande convite a adentrar aquele lugar. Mesmo assim, segurei a mão de Daniel, atravessamos a rua e entramos naquele lugar.
            Uma vez lá dentro, era visível o esforço dos funcionários para tentar fazer o cinema parecer em melhor estado do que ele estava: a limpeza era impecável, apesar do teto descascado e o cheiro de mofo misturado com um aromatizador de ambientes competente. Daniel escaneava cada milímetro do espaço com o olhar. Ele parecia encantado. Levei-o até a pequena bomboniere do cinema, com sua pipoqueira gigante que ficava num canto da bancada e que com certeza se destacava do resto do balcão. Pedi um pacote grande para nós dois. Falei com ele que, por hoje, ele poderia abrir uma exceção — que a mãe ele não estava vendo e que aquele seria nosso segredo — e que ele poderia pedir o que quisesse comer. Um sorriso largo se abriu em seu rosto e Daniel, tímido, pediu um pote de Mini Bis e uma Coca-cola de tamanho médio.
            Escolhi para nós uma animação da Pixar que estava em cartaz (“uma criança do século XXI que nunca assistiu uma animação da Pixar no cinema infelizmente não é uma criança completa”, pensei comigo mesmo), comprei os ingressos e entramos. Ao chegar na sala escura, Daniel se assustou e grudou em mim. Não pude evitar um sorriso. Escolhi lugares na parte superior da sala, de modo que nenhum "cabeção" pudesse atrapalhar nossa vista.



            Observava Daniel com uma sensação indescritível. Talvez fosse essa a graça e o sabor de se sentir responsável por alguém: poder lhe ajudar a fazer as mais singelas descobertas. Como alguém como eu poderia ser professor de vida para uma criança de quatro anos? Ao ver seus olhos brilharem assim que a tela branca começou a projetar imagens em movimento, ao ver um sorriso escancarado em seu rosto por uma hora e meia, ao vê-lo rir, conversar com os personagens, se impressionar, lutar, torcer por eles. Aquela emoção nítida, ingênua e verdadeira.
            No fim, me dei conta que é assim que devemos encarar a vida: com o coração de um adulto, já enrijecido pelo tempo, mas com o olhar de uma criança, ávida por descobertas.
            Exausto pela nova experiência, Daniel adormecera. E eu, que nunca tive traquejo social, saí do cinema carregando uma criança no colo, dormindo em meus ombros.

14 de março de 2013

[106] Episódio 4 – Coisa de velha


Os dias que sucederam o incidente na janela vizinha foram de uma busca por saber quem seriam aquelas duas mulheres. O apartamento seria o 203 ou 204 do edifício com entrada na rua ao lado, seguindo a lógica da numeração e supondo que haviam dois apartamentos por andar, o que foi comprovado numa rápida passagem pelo interfone daquele prédio. Lêda lamentou o interfone não ser como neste blog, onde, ao lado do número, estaria o nome do morador. Teria de arranjar um jeito de descobrir por si só.

Mas qual? Que meios disporia uma senhora da sua idade? Passava o seu tempo livre, que não era pouco, pensando nisso, numa variação entre um verdadeiro frenesi e uma moderada depressão ao tomar ciência do quão solitária era por ter a necessidade de se intrometer na vida dos outros. Não era uma velha futriqueira. Nunca fora. Estaria se tornando? Porque não, não era empatia e compaixão que estava sentindo pela moça. Era curiosidade. Apenas. Coisa de velha.

Era sábado e saiu para ir à feira que trancava a rua detrás da sua. Pegou a sacola e foi comprar seus mamões como fazia toda semana. Estavam caros, cada vez mais caros. Talvez devesse se render ao iogurte que, milagrosamente, reduzia o inchaço na barriga e, caro por caro, ficaria, assim, com um café da manhã de madame. Foi quando passou por uma banca recheada e resolveu comprar uns tomates - por estarem bonitos, apesar de caros - que a viu.

Não reconheceu o rosto, os traços, a fisionomia. Fixou-se numa marca de arranhão no pescoço. Era ela, sem dúvidas, era ela. Não que essa marca, despois da briga presenciada, fosse determinante para o reconhecimento da moça agredida, mas algo estalou e disse: era ela! Muito bonita sob o dia iluminado, Lêda reparou em traços de juventude que não via há tempos. Quando saía à rua, não olhava mais para as pessoas. Quando parava frente ao espelho, juventude nenhuma via mais. Estava desfamiliarizada com isso.

A moça escolhia batatas e foi justamente o que Lêda quis comprar também, abandonando os tomates. Enquanto dividam o espaço, separando as feias das bonitas, as grandes das pequenas, cada uma escolhendo a seu gosto, disse: “Pensei que feira fosse coisa de velha, mas vejam que não!”. A moça sorriu: “Aqui as coisas são mais bonitas que no supermercado. Apesar de tudo estar caro, cada vez mais caro”.

Pode-se dizer que, de certo modo e em outra ocasião, isso seria paixão à primeira vista.

Lêda já estava entupindo o segundo saco de batatas, sorrindo sem perceber, quando notou que a jovem comprava muito pouca quantidade de cada produto e parecia já estar finalizando as compras. Não sabia mais o que fazer para poder ter mais informações sobre a moça, para ter certeza de que ela era ela. Não queria começar a perguntar nada ali na feira, sem a conhecer. Não era, como sabemos, uma velha futriqueira. Resolveu, então, criar a tática de ficar de olho enquanto, ao contrário, comprava, rápido, muitas coisas. Sabendo que iriam percorrer quase o mesmo caminho até em casa e que qualquer um ajudaria uma pobre senhora a carregar suas compras, ainda mais uma jovem simpática com poucas coisas na mão, não teria erro: haveria a oportunidade, enfim, de iniciarem uma conversa.

Mas muitas compras na feira implicava em muito dinheiro, coisa que Lêda não tinha pego em casa antes de sair. Além disso, aqueles quilos de batata iriam fora, o resto que comprasse em grande quantidade também por não haver quem desse conta, sua consciência reclamaria, pessoas passando fome, que planeta vou deixar para meus netos? etc. O plano não daria certo. Foi quando viu as melancias.

Os cabelos lisos e castanhos da jovem já brilhavam ao sol cruzando a última barraca da feira. “Duas melancias, as maiores!”. Pagou por elas e apertou o passo. Apertou o passo o quanto a idade deixou. Arqueada, virou a esquina. Estavam a meia quadra de distância uma da outra: a jovem com poucas compras; a velha com duas melancias. A distância, apesar do esforço de Lêda, só aumentou com o passar do tempo a ponto da moça virar novamente a esquina e dela não conseguir vê-la entrando no prédio onde, até então, apenas sua imaginação tinha certeza de que ela moraria. A brilhante ideia fez com que ela não conseguisse se certificar nem de que a moça morava, de fato, no edifício vizinho.

Lêda e sua frustração chegaram em casa e atiraram as melancias no chão, tomaram duas aspirinas e sentaram-se curvadas, com dor, no sofá. A noite seria longa e, no café, teriam melancia.

10 de março de 2013

[403] Episódio 5: Tempo Esgotado!

Depois das fortes emoções vividas tudo parecia voltar ao normal nos meses que se seguiram. 

Luis era um amante extremamente ardente e, como se diz por aí, na gíria, o número certinho de Mirella. Sendo os dois maduros, não cabia na relação sexual situações que pudessem melindrá-los. Viviam intensamente aqueles momentos, seguindo obviamente com toda segurança que a situação pedia. Em uma relação entre pessoas adultas não cabe inverdades e ambos sabiam que deveriam respeitar este código. Com isso se permitiam viver tantas fantasias quanto fossem possíveis.

No entanto, Mirella começou a perceber que seus sentimentos oscilavam. Atitudes e situações que a levavam a crer que poderia estar enganada. Um questionamento se instalou de tal forma em sua mente que sua inquietude começou a transbordar em forma de impaciência e isso, obviamente, refletia na relação deles.

Será que Mirella sentia por Luis paixão ou compaixão?

Luis, com o tempo, foi se instalando em sua casa com generosa frequência. Volta e meia se dizia sem dinheiro e fazia empréstimos a ela com o devido cuidado de deixar claro que saldaria a dívida logo recebesse seus pagamentos. Mirella insistia em querer saber mais sobre a atividade profissional dele. Segundo Luis, sua função era de assessoria, mas na real, Mirella acabou descobrindo que, simplesmente, Luis vivia de “bicos”. Ele não conseguia manter um emprego por muito tempo.Batia no peito e dizia que não nasceu para ser empregado e sim chefe. Segundo sua própria versão: explodia sempre com seus superiores, que em geral, para ele, eram sempre burros.

Tipicamente coisa de leonino, justificava Mirella. São orgulhosos demais para se subordinarem  a uma chefia. Triste constatação! Triste situação que Mirella teimava em não enxergar.

Naquele dia, ela saiu mais cedo do trabalho e, chegando ao prédio, passando pelo hall reparou um  burburinho diferente do habitual. Escutou comentários sobre a saúde frágil de Seu Célio,o morador do apartamento 106, parecia que era sério! Apiedou-se do mesmo, mas seguiu seu caminho. Queria chegar logo em casa e descansar. Tinha sido um dia estressante no escritório.

Assim que saiu do elevador, o qual por um milagre funcionou naquele dia, pode sentir ainda no corredor o cheiro insuportável de cigarro que impregnava o ar. Isso a fez lembrar que deveria ter sempre em mente essa sensação para que não voltasse mais a fumar. Sentiu náuseas e um leve mal estar invadiu seu corpo.

Luis estava ali. 

Ao entrar o viu na sala deitado no sofá, diante da TV  com um cinzeiro repleto de bingas de cigarro. Percebendo a presença dela, ele se levantou e foi ao seu encontro.

- Chegou mais cedo, criança! - Beijou-lhe de leve a boca.

Notou um franzir de testa. Ignorou.

- Já te pedi muitas vezes para não me tratar assim... e esse cheiro?! Sabe que detesto!

Luis pegou o cinzeiro e, com má vontade, jogou as cinzas no lixo.

- Já vi que seu dia hoje não foi nada bom, né?

Rispidamente Mirella resmungou alguma coisa e foi pro quarto.

Luis ouviu o som da água que caía do chuveiro e foi até a cozinha preparar algo para comerem. Preferiu não falar mais nada para não piorar a situação. 

Mirella saiu do banho, enrolou a toalha na cabeça, vestiu um robe de seda confortável, calçou as sandálias e, um pouco mais relaxada, foi ao encontro dele, na cozinha. Estava faminta. Preferiu mudar o assunto. Enquanto comiam trocavam experiências sobre o dia.

- Quando cheguei no hall do prédio me pareceu ouvir que seu Célio está mal. Vai ter que ser internado.

- Aquele velho nazista? Bem feito.

- Luis! Não fala assim . Seu Célio é um senhor muito distinto e já tem idade bem avançada. Acho que mais de 90 anos!

_ Azar o dele.

- O que ele te fez para tratá-lo dessa forma? Nem o conhece direito!

- Andei sondando por aí. Dizem que ele é bem ranzinza. Só podia, sendo alemão!

Mirella não conteve a risada.

- Ahahaha , ele nem é alemão!

Mudando o tom da voz ela o interpelou:

- Não sabia desse seu lado radical e preconceituoso.

Percebia-se um ar de decepção na voz dela.

Luis não ligou e então desfiou todo seu conhecimento e julgamento sobre a suástica e os mandos e desmandos de Hittler, a guerra e o holocausto, insistindo na comparação feita ao senhor Célio. Enquanto ele falava, Mirella fingia ouvi-lo. Seu pensamento divagava. Estaria ouvindo mesmo tudo aquilo do homem pelo qual se apaixonara e que se mostrara tão frágil e sensível há tão pouco tempo?! Como poderia estar tão enganada?

A comida não lhe caiu bem.

Esperou pacientemente que Luis terminasse sua dissertação e, desculpando-se, alegou estar cansada demais. Preferiria dormir sozinha aquela noite. Luis ainda tentou provocá-la, se fazendo de vítima, como de costume, afinal só porque chamou o tal vizinho de nazista ela o mandava embora? Tentou se desculpar mas Mirella foi implacável em sua decisão. Restou-lhe então acatar o pedido.

Foi a última vez que Luis entrou naquele apartamento...

7 de março de 2013

[407] Episódio 4: Ártemis & Clyde


Eu viro a cabeça e bato o nariz num negócio duro, viro para o outro lado e sinto cheiro de hambúrguer. O moço me oferece um pedaço e de repente lembro que não como há muitos anos.
Eu tento falar, mas parece que existem quatro Sansões ainda cabeludos segurando minha cabeça. Entendi, meu Deus, eu morri! Mas meus olhos gritam “eu quero hambúrguer sim, moço, obrigada.”

O negócio duro era o vidro do carro. Minha mão, algemada na porta. O moço é polícia. A maconha na bolsa deu cadeia? Não, ela tá guardada na outra bolsa, em casa, não pode ser. Será que eu matei alguém? O moço rompeu o silêncio de novo.
_ Torce pra velhota retirar a queixa. Você vai virar ração na ala feminina.
_ Me dá.
_ O que?
_ O hambúrguer. Eu não como há muitos anos.

Lembrei da velhota. Eu fui ao banco retirar a parcela do seguro, ela estava na fila e a deixei passar na minha frente. O neto estava ao lado e me agradeceu. A porra do meu dinheiro não tinha saído, tava chovendo na minha cabeça o bastante pra fazer inveja à Noé, fome, muita fome. Paramos na escada, a velhota, o neto e eu. Mas eles, com dinheiro. Eu, na merda total.

Me ofereceram carona, pegariam um táxi. Aceitei. O que mais poderia acontecer? Como eu sou inocente, minha aparência não andava nada apetitosa ultimamente, por que cargas d'água aquele bonito rapaz faria tanta questão de levar uma semi morta de fome aos confins da Conchinchina?

Dinheiro, sempre o dinheiro. Maldito dinheiro, que eu precisava tanto e que fugia mais de mim que o Diabo da cruz. Engraçada essa expressão. Deveria ser “como Jesus foge da cruz”, afinal, o crucificado foi ele. Caiu catchup no meu colo. Ração sabor Hellman's na área, pessoal.

Conversamos bastante no caminho. Gente agradável, eu nem sabia que essa espécie de gente ainda existia. Cheguei em casa espirrando, arrancando casaco. O neto bonito abriu a porta pra eu sair e saiu junto. Pediu meu telefone, mas o telefone da mesinha da sala é só um souvenir dos antigos moradores. Perguntou se poderia vir, qualquer hora dessas, para um café. “Por que não?” Não faço sexo desde o Papa João Paulo. Apartamento 407. Ele me passou um número de telefone, mas olhando bem o casaco, não deve ter sobrado muito do papel.

Passei uns bons quarenta minutos dizendo o nome dele em voz alta. Os olhos azuis imaginários mais bonitos do Edifício Cinza. Danilo.

Seu guarda, como é que eu ia saber, né. Que eu ia parar aqui nesse carro, com essa algema e todo esse catchup. O mundo me condena e ninguém tem pena, seu guarda.

Naquele dia, depois de tirar as roupas molhadas, deitei no colchão velho, olhei pro teto e a mancha de mofo tinha formato de coraçõezinhos. Quais seriam os formatos do teto mofado da cadeia?

"An innocent man in a living hell.

That's the story of the Hurricane,

But it won't be over till they clear his name

And give him back the time he's done.

Put in a prison cell, but one time he could-a been

The champion of the world"
(DYLAN, Bob - "Hurricane", 1976)