“Antes que
deixemos nossas malas
Pela rua e fechemos as cortinas
Se você se vai e eu também vou
Isso já é sério
Se você vai e eu também vou
Com quem fica o cachorro?”
Se você se vai e eu também vou
Isso já é sério
Se você vai e eu também vou
Com quem fica o cachorro?”
(Tradução livre da canção “¿Com Quién Se Queda El Perro?”, da
dupla Jesse & Joy)
Não me lembro de ter contado a origem da minha falta de
arquejo social. Como eu disse, nunca fui muito fã de pessoas. Bullying quando
criança (sim, as crianças do campo também sabiam praticar bullying muito bem,
mas lá isso não tinha nome) e eu sempre preferia a companhia dos livros a
conviver com aquelas crianças que sabiam ser bem mais malvadas que os vilões da
ficção. Meus pais sempre me apoiaram. Não que eles pudessem fazer muita coisa,
mas meu pai sempre voltava das suas idas semanais à Cidade com uma dúzia de
gibis de um sebo.
Quando os dois morreram naquele terrível acidente de carro,
soube que eu precisava mudar minha vida radicalmente. Peguei minhas malas, o
dinheiro que eles me deixaram e vim para a selva de pedra. Confesso que sofri
muito no início. Foi uma adaptação dura, brusca e quase fui atropelado várias
vezes. Contei com a ajuda da única pessoa que eu conhecia nesse pequeno mundo
de cimento e paralelepípedos: Marina.
Ela era a única pessoa que realmente me fazia sentir bem na
época de escola. A mais moleca de todas, que subia nos pés de frutas com os
meninos e não ligava pelo fato de eu ser o menino franzino, estranho, de óculos
enormes e que lia gibis do Chico Bento. Ela sempre me chamava pra brincar,
dividia suas frutas e até tentava se enturmar com o meu “mundo de papel”, como
ela chamava.
Ela se mudara para a Cidade dois anos antes de mim, para
estudar e “ser alguém na vida”, como todos os moradores do campo desejavam para
aquelas crianças que corriam entre as plantações, riachos e estradas de areia.
Já tinha ido à Cidade várias vezes, mas fixar moradia num local desconhecido é
algo completamente diferente. Liguei para ela do meu
celular-que-só-faz-chamadas e ela foi muito simpática ao me mostrar tudo que eu
precisava conhecer.
— E onde você vai morar? – perguntou enquanto tomávamos
milk-shake num shopping e depois de eu ter observado e absorvido cada detalhe
daquele lugar que, pra mim, era impressionante.
— Minha tia arrumou um apartamento pra mim. Com dois quartos,
bem confortável. Comprei com a herança que o velho me deixou. Ainda dá pra eu
me sustentar um tempinho. Começo a faculdade semana que vem e espero arranjar
um emprego logo.
— Nossa, então você veio pra ficar mesmo, né? — ela sorriu.
Depois tomou mais um gole do milk-shake antes de continuar. — Você disse que
seu apartamento tem dois quartos, não é?
— É, por quê? Você quer ir morar comigo? Achei que você vivia
bem na tal república.
— Viver eu vivo bem, mas, sabe como é, aguentar várias
mulheres de TPM ao mesmo tempo... aliás, tenho privacidade zero. Eu te ajudo a
pagar as contas... fechado?
— Fechado!
Adentramos o Edifício com toda aquela sensação de
curiosidade, como duas crianças desbravando um novo mundo. Eu não tinha
visitado o apartamento antes. Aliás, surpreendeu a nós dois o fato de o
apartamento estar amplamente ricamente mobiliado e decorado. Minha tia só havia
me contado que o antigo dono havia morrido há poucas semanas e a família
resolveu vendê-lo com tudo que tinha dentro para saldar dívidas deixadas pelo
falecido... Pelo preço que me fora cobrado, os parentes do morto não tinham
noção do valor inestimável daquele lugar.
Além de ser uma pechincha para um apartamento no coração da
Cidade, ele era bem amplo. Cheio de móveis antigos feitos com madeira de lei.
Livros, muitos livros! Ele era perfeito para mim. Passaria muito tempo lendo os
clássicos da estante da sala de estar.
Marina não gostou tanto assim da “velharia”. Não posso
culpá-la: seu espírito moderno e independente era bem diferente do meu. Não
gostávamos das mesmas coisas. Na realidade, éramos completamente diferentes.
Mas essa experiência de morarmos juntos iria render bastante. Estava preparado
para o novo.
As semanas passaram. A cada dia, descobria detalhes e
histórias escondidas nos móveis antigos. Marina saía logo pela manhã e só
voltava à noite. Eu tentava me acostumar àquele lugar. Saía pra faculdade e
observava tudo em volta com cuidado. Estudar computação faz com que você não
precise interagir com muita gente. O pessoal geralmente é mais calado. Perfeito
pra quem tinha medo da socialização como eu.
Mas, no fundo, eu me sentia sozinho. Marina também. Só
conseguíamos nos encontrar no fim de semana, quando ríamos e assistíamos aos
filmes de ação idiotas que ela adorava. Ela supria toda minha necessidade de
socialização. Mas eu não preenchia todas as dela.
Foi quando Marina começou a trazer homens para dentro de
casa. Nada contra eles, mas era estranho tentar dormir com sua colega de quarto
transando no quarto ao lado. Não que eu me importasse muito com sexo — desde
que descobri em minha adolescência que poderia me resolver sozinho, nunca me
preocupei com isso —, mas era incômodo ver desconhecidos sentados comigo na
mesa de café da manhã.
Num fim de semana, uns dois meses depois do início disso
tudo, houve uma feira de adoção de animais perto de casa. E lá fomos nós, dar
uma olhada naqueles animais que, por um motivo ou outro, foram abandonados.
Passeando entre cães e gatos, chegamos ao último. Jogado num canto, acuado, lá
estava aquele pequeno cachorro, cujos dentes saltavam da boca. Suas grandes
orelhas destacavam-se. Seus olhos suplicavam por carinho. E eu não tinha como
não levá-lo para casa. E, pela primeira vez em muito tempo, eu e Marina
concordamos em algo: Monstro era nosso.
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