Noutra noite, o sonho tinha sido ainda mais
esquisito. Eu recebia uma ligação e me diziam que ela tinha morrido.
Corria, apavorada, pela casa grande (no sonho, eu ainda morava na minha
verdadeira casa). Chegava na clínica e ela estava lá, rosto frio de
sempre, congelado, ainda sem lembrar de mim. Acordei chorando, no
colchão do apartamento. Se estava lúcida ao chegar, o tempo se incumbia
de me transformar numa doida varrida. Dêem-me dinheiro, senhores,
rasgarei-o, só não contem ao seu Lobato, o síndico perverso.
A vida é louca, o mundo é triste:
vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor!
vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor!
(Mário Quintana)
Mamãe está internada numa clínica psiquiátrica muito bonitinha, tem umas flores na frente. A moça da recepção é sorridente e dou meu rim na pracinha se ela não é interna daquela lugar, cumprindo carga de trabalho em troca da liberdade. Ninguém sorri num lugar como estes. Ninguém gosta de inferno e o hospício (às favas as convenções sociais, doido mora em hospício, clínica de repouso é a puta que nos pariu) é o maior inferno que existe. Eu olho mamãe naquela cadeira, rosto impassível, de quem, em algum momento, preferiu criar um mundo imaginário a enfrentar o mundo real. Toda uma vida, uma história, fora a minha vida, a minha história, se esvaindo naquela camisola horrenda e nos comprimidinhos de gardenal. Ficaram para sempre comigo as lembranças das noites em claro, as malinhas de viagem, ora dormindo na casa de um, ora dormindo na casa de outro, depois que a família Veiga veio tomar a casa. Maldita família Veiga, sortuda família Veiga, levaram nossa história, nossas toalhinhas de crochê. Eu tenho sonhos lindos, atirando no Sr. Veiga, jogando pedra no Sr. Veiga, noite dessas eu batia na cara gorda dele até que um dos seus olhos saltava e batia na parede.
Hoje terei um bom dia, tenho fé. Recebo a primeira parcela do seguro desemprego e ajeito minha vida, adeus dieta pobre, adeus banho gelado, adeus pastel do china. Tal qual Elias, sem Lucilia, vou gritar ao mundo, sorrindo “Faz um bifão pra mim!“*
“Here I am waiting for a better day
A second chance
A little luck to come my way
A hope to dream a hope that I can sleep again
And wake in the world with a clear conscience and clean hands
'cause all that you have is your soul“
(All That You Have Is Your Soul - Tracy Chapman)
__________________
* referente à crônica “Relato de Ocorrência Em Que Qualquer Semelhança Não É Mera Coincidência“, de Rubens Fonseca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário