27 de fevereiro de 2013

[201] Segundo Episódio: A ti mesmo


rei Otávio, o novo pároco.
 - Frei? Mas por que frei? O senhor não é padre?
 - Sim, sou padre. Mas, diferente do pároco anterior, eu pertenço a uma ordem religiosa, é por isso que nos tratamos como freis. Eu sou um irmão religioso que também é padre. Entendido?
          - Mas tão novo o senhor, não? É até estranho chamar de senhor.
          - Levo como um elogio, mas garanto que dentro desse corpo mora um padre bem velhinho, daqueles que estamos mais acostumados a ver por aí.

          Esse tem sido o meu início padrão de diálogos por esses últimos dias, em que de meia em meia hora aparece alguém a quem devo me apresentar. Meu tempo tem se dividido entre estas conversas banais, celebrar as missas diárias e inteirar-me a respeito de como funciona em termos administrativos esta paróquia, tarefa que tem se apresentado de modo incrivelmente simples.

          O pároco anterior – com o qual, infelizmente, não pude travar contato direto em função de sua saída às pressas – deixara tudo previamente muito organizado. Chego a desconfiar de que fora advertido de que um padre inexperiente iria assumir o seu lugar. Tendo tal aviso acontecido de fato, das duas uma: ou inflou-se de amor fraterno pelo seu sucessor, a ponto de dedicar alguns dias produzindo orientações e organizando alguns relatórios que me foram cuidadosamente entregues; ou foi tomado por um sentimento de posse e de ciúmes, muito comum nesses sacerdotes que passam uns tantos anos sob a mesma função no mesmo lugar, e tratou de deixar ordens expressas para que eu não fosse inventar moda e desorganizar seu rebanho já tão bem acostumado aos seus modos de proceder.

          Na sacristia, encontrei um gigantesco quadro organizacional que continha o calendário litúrgico inteiro. Não sei se minha expressão ao contemplar esse signo de exagero administrativo foi de um leve espanto ou de desdém. Por sorte, aquela senhora que me acolheu no dia de minha chegada estava ao meu lado. Pareceu até ter duvidado de minha capacidade em lidar com o sistematicismo de seu antigo pastor, tratando logo de começar a explicar:

          - Nossa antigo pároco era muito organizado, Frei Otávio – disse em tom solene, como se estivesse falando de um morto – e deixava tudo planejado. O senhor pode observar que as equipes de liturgia já estão montadas para as celebrações de muitos meses adiante. O senhor tem mais experiência do que eu, sabe como é difícil contar com o compromisso das pessoas hoje em dia, né? Principalmente os músicos; é um tal de não poder vir, de ter outros compromissos e por aí vai o festival de desculpas.

          - Claro, claro, dona Vilma. É bom que tenhamos um bom planejamento, só espero que o Senhor encontre um espacinho nos nossos diagramas para inspirar algumas ações não planejadas – respondi em um tom levemente provocativo àquela zelosa paroquiana que não pôde esconder sua cara de desconcerto antes de alguns segundos.

          Mas sobre o que eu estava falando antes, da explicação repetida em minhas apresentações: até me teriam enchido a paciência se não fossem tão diretamente ligadas aos motivos de eu ter vindo parar aqui.

          A vida em comunidade, nos termos em que era vivida em minha ordem, gerou um constante esplim em meu espírito. Talvez Sartre se remexa em seu túmulo por fazer menção tão clichê aos seus escritos, mas o inferno (ou boa parte dele) reside no outro. Resguardados os devidos limites, há caminhantes que encontram na solidão do caminho energia necessária para os próximos passos. Se sou assim, ainda não posso responder. Lanço-me no mistério, coisa que um padre não vê como desafio. Sei que ignoro deliberadamente o legado comunitário do Santo Pai Agostinho, mas um de seus conselhos mais ardentes ecoa de forma tão vibrante em minha cabeça que não posso evitar ser consumido por ele: conhece-te a ti mesmo. 

21 de fevereiro de 2013

[505] Episódio 3: O Beijo


"Um Beijo Roubado", Wong Kar-Wai, 2007.

            Muito mais que uma colisão de lábios. Qualquer coisa, menos uma colisão de lábios. Aprendemos, desde crianças, que um beijo é uma das ações mais significativas para se demonstrar amor e carinho. Afeição. Mas uma pessoa pode passar a vida inteira sem dar um beijo de verdade, mesmo beijando todas as bocas dispostas a tal ato que aparecerem em sua frente.
            Tenho a plena sensação que nunca havia beijado antes na minha vida. Não de verdade, não daquele jeito. Descobri, naquele momento na sala de minha casa, enquanto dançava o Ritual da Chuva Seca, que um beijo de verdade se sente com o corpo inteiro. Beija-se com o toque das mãos na pessoa amada, enquanto sua pele arrepia sob elas. Um beijo se dá com a troca de olhares, que dizem as mais belas palavras de amor sem qualquer esforço. Um beijo se dá com um sorriso. Ou dois.
            No fundo, a colisão de lábios é o que menos importa.

18 de fevereiro de 2013

[403] Episódio 4: Com...paixão!


“Quando a gente acha que tem todas as respostas,
vem a vida e muda todas as perguntas.” (desconheço a autoria)

Mirella recebeu Luis com um sorriso no rosto.

Se lhe valiam de alguma coisa seus anos de experiência, uma delas era a de que um sorriso sempre cai bem quando não se sabe o que falar.  A angústia que lhe assombrava por desconhecer parte da vida daquele homem que tanto a encantara não era maior do que a paixão que a consumia.

O almoço foi tranquilo. Falaram trivialidades.

Luis é daquele tipo de cara que faz e sabe de tudo. Conserta desde cadeira que range por conta de um pé torto até máquina de lavar. Mirella não sabia se ele o fazia por curiosidade ou por economia. Afinal, em que Luis trabalhava ainda era um mistério para ela. Além de todas essas proezas domésticas, ele ainda se metia a dar palpites na decoração. Isso sem mencionar que tinha sempre algo de sugestivo a pronunciar.

Algumas vezes esse jeitinho muito moldado e prestativo a irritava. Por outras, ela relevava.

Terminado o almoço ele levantou-se, retirando algumas peças que estavam sobre a mesa, e se dirigiu à cozinha pondo-se a lavar as louças. Mirella o acompanhou nessa tarefa enquanto tentava imaginar o que Luis teria de tão importante para lhe falar. Não ousou tocar no assunto já que ele mesmo ainda nem sequer o havia feito. Como disse, falavam de banalidades do dia a dia.

- Vou fumar um cigarro!

Dito isto, ele seguiu em direção à sala. Puxou um cigarro do maço que carregava no bolso da camisa e debruçou-se, apoiado sobre seus cotovelos, no mármore frio que cobria o parapeito da janela. Com um olhar fixo no horizonte, acendeu seu vício e displicentemente soltou longas baforadas. Parecia buscar coragem naquele gesto corriqueiro. Mirella, da cozinha, espreitava-o, pela fresta da porta, silenciosamente absorvida em seus pensamentos angustiantes.

Foi Luis que quebrou o silêncio:

- Deixa isso aí e vem aqui, criança.

Mirella odiava quando ele a tratava assim. Sentia-se imbecilizada.

- Luis, por favor!

Luis assentiu com a cabeça num gesto de desculpas e, puxando-a pelas mãos, sugeriu que se sentassem no sofá. O ar da casa era uma mistura de cheiros entre cigarro, comida e mistério. Luis estava sério e, arranhando a garganta num pigarro típico de fumantes, encarou-a para, logo em seguida, baixar a cabeça e romper em um choro sentido.

Sem entender nada do que acontecia ali, Mirella instintivamente segurou o rosto dele com carinho e falou calmamente:

- Luis o que o está acontecendo? O que o incomoda tanto?

Tentando prender o choro e recuperando o equilíbrio, ele desabafou:

- Mirella, durante todo este tempo em que estivemos juntos, tenho sido o homem mais feliz do mundo e justamente por estar me sentindo assim e por perceber o quanto a estou envolvendo, preciso que saiba um pouco mais sobre minha vida. Sofro todos os dias pensando como você reagirá depois de tudo que revelar aqui. Será que ainda vai me querer? Será que vai conseguir entender meu sofrimento? O que vou te contar é sério demais.

- Pelo amor de Deus, não me diga que é casado?

Luis negou.

- Bandido?

Luis não conteve um sorriso sem jeito e negou novamente.

- É algum problema tipo... você sabe... essas coisas de disfunção, no homem? Porque se for, a gente...

Dessa vez ele nem a deixou terminar a frase, achou graça de novo e meneou negativamente a cabeça.

- Se não é nada disso então o que pode ser tão sério assim Luis?

E, rompendo novamente em soluços, Luis revelou a Mirella que tinha AIDS!

Relatou tudo desde o início: a descoberta da doença, de que forma a contraíra, as pessoas envolvidas, que, possivelmente, sem saber, contaminara. Como fora desenganado pelos médicos e o sofrimento de sua mãe, levando-o para casa com um prognóstico de que morreria em quatro meses. Contou sobre sua luta contra o tempo e os preconceitos e que depois de mais de 11 anos vencera seus próprios medos e angústias, desafiando a vida e a medicina. Calou-se.

Mirella ouvia a tudo perplexa.

O chão se abriu. Um redemoinho alcançou sua mente. Pareceu uma eternidade entre ouvir aquela confissão e reagir a ela. Um turbilhão de pensamentos e emoções a invadiu. Sem conseguir raciocinar direito, a única reação que teve foi de abraçar aquele homem que, em segundos, tornara-se um menino. Uma dose cavalar de compaixão a invadiu. Ficou abraçada a ele, em silêncio, sem conseguir encará-lo. Na verdade não sabia o que dizer e foi então que sorriu:

- Sabe Luis, de repente a nossa relação pode até terminar por qualquer motivo tosco, mas tenha certeza de que jamais por causa de sua doença!

Luis então, comovido, beijou-a ternamente.

Nada o poderia fazer mais feliz do que aquela frase dita de um modo tão natural. Recuperando sua confiança, envolveu-a em seus braços e a carregou para o quarto.

Naquela tarde, todas as dúvidas de Mirella seriam respondidas.



14 de fevereiro de 2013

[204] Episódio 3: Terça-feira Gorda



- Desde sexta o cenário não muda: uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
 - Mas não tá ventando.
- Não estrague o meu barato. Eu levei tempo para encontrar padrões entre essa gente aí embaixo e as ondulações de campos de trigo.
 - Quê?
  - Você sabe, o efeito visual que o vento exerce sobre a imensidão dourada. Pegue o leite na geladeira.
 - Cê está fazendo de novo.
 - O quê?
- Sendo cafona. “Imensidão dourada” é o tipo de coisa que minha professora de português diria. Ela tem uns 300 anos e um bigode maior que o seu. E onde é que você já viu plantação de trigo?
 - Ao vivo eu não vi em lugar nenhum, mas isso não faz a menor diferença. Na verdade eu tinha em mente as descrições dos trigais de Arles que Vincent fazia para o Theo.
 - Van Gogh?
 - Sim senhora. E isso significa que você estava ouvindo. Você não estava dormindo de verdade naquele dia em que assistimos o Kurosawa.
 - Claro que estava, filme chato pra burro. E que mania irritante essa de você achar que eu aprendo tudo com você. Agora não posso mais nem saber quem é Van Gogh?
 - Olha, você tem que reconhecer que eu me esforço para colocar um pouco de cultura nessa sua cabecinha dura, mesmo que nem sempre tenho êxito. Vou precisar de 4 ovos.
- Em compensação você nunca viu um campo de trigo na vida e acha que pode tirar uma com a minha cara.
 - Que os deuses que regulam os hormônios de todas as criaturas vivas me protejam da arrogância pré-adolescente! Eu não preciso partir numa expedição para o Trigal Desconhecido para criar uma metáfora. Além disso, plantações de trigo não são peixes abissais: não precisam ser mostradas em documentários da Discovery porque fazem parte do imaginário popular.
 - Mas não fazem mesmo. Tenho certeza de que só você fica pensando nessas coisas. Tô perdendo meu tempo: eu podia estar assistindo a final de America’s Next Top Model em vez de estar tendo essa conversa sobre trigo.
- Se te consola o episódio que você está perdendo não tem nada de mais. Aquela ruivinha que você gostava não tinha a menor chance – só chegou tão longe porque tinha uma história triste de família pra contar.
 - CARA, VOCÊ ACABOU COM A GRAÇA. POR QUE SEMPRE FAZ QUESTÃO DE CONTAR TODOS OS SPOILERS?
- A vitória da assimétrica do Kentucky não é um spoiler. Ou melhor, até chegou a ser um spoiler há mais de um ano, já que você estava acompanhando uma reprise.
 - E DAÍ?
 - E daí que spoilers têm data de validade. Porque estou sendo benevolente, posso conceder que um spoiler pode ser chamado dessa forma até, digamos, 15 dias após a exibição do programa ou filme em questão.
 - E depois?
 - Depois o problema é todo seu por ser lerda.
 - PUTA MERDA.
- Não sou sua mãe para controlar sua boca, mas, por favor, não deixe que ela pense que você está aprendendo a falar assim comigo. Não é como se ela pudesse arranjar espaço na agenda para aumentar a carga horária de sermões que ela faz.
- Você consegue ser bem mais chato que a minha mãe quando quer, sabia? Não sei por que eu ainda venho te visitar.
- Porque não há outra pessoa no mundo que cozinhe pra você no Dia da Panqueca.
 - Tá certo. O dia da panqueca é a melhor de todas as suas maluquices.
 - Vou ignorar o tom reprobatório para corrigir sua ignorância: o Dia da Panqueca é verdadeiramente uma instituição em alguns países de língua inglesa, principalmente na Inglaterra. Como você sabe ou deveria saber, o último dia de carnaval é chamado de Terça-feira Gorda, já que a Quarta-Feira de Cinzas marca o início da Quaresma, um período que para os cristãos significa ou deveria significar 40 dias de privações, penitências, jejum e purificação para a Páscoa. A panqueca entra nessa história porque é feita com açúcar, gordura e ovos: essencialmente bombas calóricas cujo consumo deveria evitado durante o período.
 - Às vezes acho que meu pai está certo e que você realmente engoliu a Wikipedia.
- Sinto muito mas “seu pai” e “certo” são duas coisas que não cabem na mesma frase sem que o universo entre em colapso. Ele jamais saberia a diferença entre a pesquisa apaixonada e o ritual bárbaro de cortar e colar da Wikipedia que se pratica por aí. Mas, de todo jeito, aprendi sobre o calendário religioso quando tinha mais ou menos a sua idade e minha mãe me obrigou a fazer catequese.
- Também aprendeu sobre panquecas na igreja?
- Quem me dera. Quem me contou sobre a parte das panquecas foi uma amiga da faculdade que gostava muito de cozinhar. Essa receita é dela, inclusive. Mais uma xícara de trigo, por favor.
 - Aí, você tinha mesmo que se mudar para o centro da cidade? Não vou conseguir dormir com essa gente cantando no meu ouvido. Posso raspar a vasilha?
 - Se você lavar a colher antes de colocar na massa pode. É o que eu estou tentando dizer esse tempo todo, Vivi. Desde sexta o cenário não muda: uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
 - Já disse que não tá ventando.
 - Sério que você quer começar tudo de novo?
- Minha mãe disse que puxei a você na facilidade para irritá-la.
 - Você até tem algum talento, mas vai ter que comer muita panqueca pra me alcançar. Quer assistir o quê  enquanto almoçamos?
- Qualquer coisa que não seja um filme do Kurosawa.
- Se você não gosta do meu jeito de passar o carnaval ano que vem podemos fazer diferente: podemos fundar o “Grêmio Recreativo Imensidão Dourada”. Imagina só! Posso pedir para a sua professora de português criar uma marchinha, saímos nesse sol para competir com o bloco lá embaixo e nos misturamos à plantação de cabeças que se agitam sem vento, como você faz questão de assinalar.
- Não abusa da sorte, tio Jorge, e me passa o leite condensado.
- Tudo bem, madame, a senhora é quem manda.


13 de fevereiro de 2013

[201] Episódio Piloto: Cinza - Uma Nova Liturgia


areço encarnar um senhor ao admitir, mas parece que tudo o que nós conquistamos no fluxo de nossa vida é mesmo aquela lanterna na popa, capaz tão somente de iluminar as ondas que deixamos para trás*. Pode ser que alguém de mais idade e consequentemente sem grandes expectativas para o futuro em vida contente-se com tal entendimento; quanto a mim, as ondas formadas no decorrer de vinte e cinco anos ainda não parecem compor uma unidade interpretativa de valor satisfatório. Perturba-me o futuro. Quisera eu apegar-me ao passado e ao seu significado a posteriori diante da certeza estéril que meus dias estão se acabando!

          Acredito, porém, estar realmente me antecipando em sentir tais coisas, tipicamente reservadas a outras épocas da vida. Um dos perigos da busca pela transcendência cristã é esquecer-se da ordem da vida terrena. E nós, cuja tarefa é demonstrar mais incisivamente uma possibilidade de harmonia entre as duas dimensões da vida, criamos frequentemente estilos de vida quiméricos; em menos palavras: ligamo-nos mais ao inferno do que à recompensa atemporal do paraíso. Como disse o rabugento sacerdote com uma voz embriagada de tédio em uma das minhas confissões juvenis, o tapete do inferno é feito de padres. Ainda me questiono se foi uma lamentação indevidamente verbalizada ou uma tentativa de assustar-me.

          E é envolto nestes pensamentos que desfruto das primeiras horas de solidão em meu apartamento. Há pouco uma senhora testava a minha paciência pensando provavelmente estar dando-me a atenção merecida por um pároco recém chegado à Cidade. Uma daquelas senhoras que estão espalhadas em tantas paróquias por aí: quarentona, friamente casada, sempre abusando dos detalhes dourados em suas roupas brancas (e não ouso questionar os motivos de um padrão tão curioso), troncuda e acumuladora de funções como coordenadora da catequese, da pastoral do batismo, da equipe de liturgia e – mesmo sem entender bulhufas de música – professora do coral infantil. Por trás de tão solícita recepção, há uma mensagem tão mais clara quanto intimidadora, que talvez possa ser expressa por “Prazer, padre. Nós somos seu rebanho e esperamos que cuide de nós, mas saiba que também estamos de olho em você”. Compreensível.

          Duas malas estufadas esperam por seu desmanche no quarto, sobre o lençol marrom de algodão bruto com que éramos obrigados a arrumar nossas camas ainda no seminário menor. Pela primeira vez, rezei as Vésperas em meu genuflexório privado, sem o coro da comunidade a entoar o hino e sem a luz vermelha do Sacrário a corar meu rosto. 

          A ausência dos violões dá lugar à sinfonia atonal que emana das pessoas, dos motores, dos apitares constantes, dos bueiros. Sons independentes na medida do possível, mas nunca desconexos. Um destino cada vez mais insondável me aguarda e na liturgia da vida moderna não há cerimoniário que nos possa indicar o que fazer. Sinto a estola – não mais verde, roxa, vermelha ou branca, mas cinza – pesar sobre meus ombros. Lembro inevitavelmente do caso do padre que foi encontrado enforcado em seus próprios paramentos.




* “A luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”. (Samuel T. Coleridge)

11 de fevereiro de 2013

[106] Episódio 3: As janelas

Há anos, raiou no céu uma nova estrela. Não, essa não se chamava Aurélia Camargo: era um corpo celeste mesmo. Lêda sabia bem disso porque um de seus velhos passatempos nas noites insones era sentar no seu pátio e admirar o céu. Essa estrela não existia antigamente. Ela tinha certeza. Essa estrela era descoberta sua.

Nos primeiros anos vivendo ali, a tarefa de observar o céu era um pouco mais fácil. A não existência dos edifícios ao redor facilitava a visão. Depois, instalara-se o que Lêda chamava de “pequeno cortiço”. Os edifícios se juntaram a ponto de, no inverno, o sol não bater no interior do apartamento em nenhum momento do dia.

Lêda havia acordado às 4h, sem querer. Tomou água e tentou dormir novamente. Não conseguiu. Resolveu sair para o pátio e aproveitar o resto da noite que ainda tinha admirando sua estrela junto às de Galileu. A despeito do verão, soprava um vento frio na madrugada e decidiu, então, pegar um agasalho e sentar-se na pequena área coberta que havia aos fundos. Tinha uma visão do céu, não grande, mas o suficiente para ela. Via, também, suas plantas e algumas janelas do edifício ao lado. Em uma delas, a luz estava acesa. O vidro jateado fechado fazia com que fosse possível observar apenas um vulto no interior do apartamento. Esse vê-não-vê causou uma profunda curiosidade que a fez momentaneamente esquecer sua estrela.

Ali era a janela da área de serviço. Por detrás do embaçado, via o perfil do que achava ser uma mulher. Logo a janela se abriu. Lêda teve o ímpeto de se levantar dali e sair para não ser vista, mas percebeu que estava no escuro e que seria muito difícil enxergá-la. Decidiu ficar quieta para não ser percebida. E o que viu a perturbou.

A mulher, agora vista de maneira clara com a janela aberta, segurava um cigarro aceso entre seus dedos que esquecia de fumar. Era nítida sua expressão de abatimento, mesmo de longe e apesar de Lêda ter demorado a perceber. Como alguém de luto, parecia ter olheiras de quem não dormia há dias e começou a chorar sem escândalo, mas com profunda tristeza. A senhora sentada agradeceu mentalmente a luz forte do apartamento que iluminava a mulher e o fato de nunca ter necessitado usar óculos, o que se confirmava a cada visita anual ao oftalmologista.

O cigarro acabava praticamente sozinho quando aparece atrás outra mulher, aproximadamente da mesma idade. Ao contrário da primeira, aparentava satisfação no semblante. As duas trocam algumas palavras. Agora, Lêda já não agradece: apesar da noite silenciosa, a idade não permitiu que entendesse nenhuma palavra dita por elas, mesmo com o tom se intensificando. Não havia dúvidas que aquilo era uma discussão.

Um desconforto começou a se instalar nela, mas não em maior intensidade do que a curiosidade. Por que discutiam? Quem eram essas mulheres? Em todos esses anos, nunca havia passado por uma experiência dessas. Poderia ser banal, mas não para uma senhora que vivia sozinha, enclausurada em seu apartamento, entre móveis antigos, paredes coloridas e suas plantas. Nem porta-retratos davam a sensação de algo vivo naquele lugar. Já havia, há tempos, tirado todos do apartamento para não ver o rosto de quem não a vê pessoalmente.

A discussão estava no que parecia seu auge quando a mulher feliz, permanecendo feliz, arrastou a mulher triste, que permanecia triste, para dentro do apartamento e rapidamente fechou a janela. Os vultos se afastaram do vidro. Não havia mais pessoas, cigarro, fumaça, choro nem murmúrios incompreendidos. Havia, novamente, o silêncio da noite e a estrela de Lêda. Mas isso já não interessava mais.

Lêda morava sozinha dentro das paredes maciças do seu apartamento. Mas não saía de sua cabeça que todos estavam ali tão próximos, embora apartados. Percebeu que era só pensar na etimologia da palavra: apartamento, apartar. Mas, graças!, haviam as janelas. E, para Lêda, havia agora uma distração.

5 de fevereiro de 2013

[403] Episódio 3: Embalos de Sábado...




Naquela manhã de um sábado quente, Mirella chegou em casa esbaforida.

Depois de correr seus quilômetros diários, precisou subir as escadas do prédio, já que o elevador mais uma vez resolveu emperrar.  Não quis esperar o síndico para consertar aquela geringonça ultrapassada que, paralisado à sua frente, só servia para atrasar seu dia.

Ainda era cedo e pretendia faxinar o apartamento como sempre fazia aos sábados.

Ao adentrar seu apartamento, foi direto para a área de serviço, onde tirou os tênis, deixando-os no parapeito da janela para arejar e, em seguida, as meias, colocando-as no cesto de roupa suja. Sensação gostosa essa de liberar os pés. Já na cozinha, abriu a geladeira e sorveu enormes goles de água no gargalo da garrafa que a esperava, oferecida, naquela prateleira vazia de seu refrigerador. Isso a fez lembrar que precisava fazer compras. Enrolou os cabelos, torcendo-os, e prendeu-os com uma presilha, pegou o material de limpeza, foi até a sala e colocou seu CD favorito no aparelho de som.

No ritmo vibrante dos sucessos dos anos 70 deu início a sua ilíada.  

Efeito enebriante que a música causa em nossos corpos quando nos deixamos levar por suas notas. Momentos que nos fazem recordar, sejam boas ou más lembranças.




E foi assim, absorvida nestes pensamentos que Mirella, enquanto arrumava a casa, dançava ao embalo frenético daquelas músicas revivendo em sua memória seus momentos com Luis...

Há uns dois meses, finalmente, ele ligou, e os dois marcaram um primeiro encontro. Saíram para jantar e terminaram a noite dançando num espaço descolado que tinha na Cidade. A noite foi muito agradável e desde então mantiveram contato procurando minimizar a saudade, entre uma saída e outra, através de telefonemas, emails e MSN. Estavam envolvidos e Mirella tinha certeza de que se apaixonara. Foi o que a encorajou a terminar com Carlos um relacionamento que vinha mantendo há quase sete anos e que já não ia lá muito bem.

Luis era um homem de aparência exótica (padrão que Mirella dificilmente fugia). Muito magro, alto, com ombros largos, mãos grandes e habilidosas. Usava cavanhaque e um brinco na orelha esquerda. Tinha um certo quê de cigano. Os olhos de Luis emanavam mistério.

Unicamente, nestes dois meses, só o fato dele ser fumante que a desagradava. Detalhe esse que Mirella preferia ignorar por motivos já conhecidos.

Durante seus encontros, foram poucas as vezes que Luis investira num contato mais íntimo. Mirella se deleitava entre os braços magros, porém fortes, dele.  Seu peito ardia de paixão ao ser tocada e um calor excitante a dominava quando se beijavam. Ela se oferecia sem pudores. No entanto Luis desviava, despedia-se ou adormecia com Mirella aconchegada em seus braços, visivelmente evitando uma intimidade maior. Isso perturbava Mirella, que procurava não tocar no assunto.

Houve uma vez que Luis a interpelou.

- Você deve estar estranhando esse meu jeito não é?

- Como você mesmo disse: é o seu jeito!

Luis abraçou-a carinhosamente agradecido pela sutileza de sua resposta.

Não tocaram mais no assunto, e agora, esse silêncio.

Foi repentinamente que um vazio tomou conta do coração de Mirella. Ela sabia de cor os dias que silenciaram sua paixão. Já fazia um grande espaço de tempo desde a última vez que tivera notícias de Luis.  O que pensar? Por que, novamente, este sumiço? Muitas hipóteses e óbvias, claro: Seria ele casado? Gay? Teria alguma disfunção? Deveria ela desistir? Insistir? Mas aqueles beijos...

Saiu de seu transe apocalíptico quando ouviu, de súbito, umas pancadas no chão de seu apartamento. Sorriu um sorriso tranquilo e de paz quando percebeu que deveria ser o morador do andar abaixo do seu reclamando de alguma coisa. Talvez dos pensamentos de Mirella, que deveriam estar ecoando pelos cantos da casa mais alto que o som de seu aparelho de CD. Diminuiu o volume da música e esperou que as pancadas cessassem. Já estava na hora mesmo de parar de sofrer. Acreditando que tudo na vida tem uma explicação, preferiu sossegar seu coração entregando-se as atividades diárias.

Faxinar era a palavra do momento. E em seu vocabulário próprio, isso podia significar muitas coisas; limpar, arrumar, tornar agradável o ambiente.

A vida não se apresenta como nos sonhos e quem acredita nisso acaba iludido. Mirella, sendo uma mulher madura, sabia disso. Seu problema era que mergulhava em suas paixões de corpo e alma sem cilindro de oxigênio. Sofria de carência inconsciente e alimentava um desejo quase insano de encontrar sua tão prometida metade. Os sentimentos e o prazer falavam mais alto e não a deixavam raciocinar direito. Por conta disso, seus relacionamentos eram, invariavelmente, problemáticos e confusos. Ou seria ela confusa e problemática?

Enfim, casa cheirosa, mobílias no lugar e um corpo exausto numa mente hiperativa. Assim mesmo, nessa relação desproporcional. Como a vida de Mirella.

O telefone tocou.                        

Sempre foco de suas ansiedades, esse sonoro ruído a tirava das divagações habituais e a trazia para realidade. Apesar de estar a espera de uma ligação de Luis, naquele momento não pensava nisso, e atendeu displicentemente. Qual não foi sua satisfação ao ouvir a voz dele do outro lado do fone. Tentou disfarçar sua surpresa. Nem deu tempo, Luis foi breve. Marcou um encontro para o dia seguinte, ali mesmo, na casa de Mirella e pela seriedade imposta por sua voz ela preferiu não mencionar nada. 

Nenhuma cobrança, nenhuma indagação.

Desligou o aparelho com a mesma e inconformada situação anterior; cheia de dúvidas e mistérios.

Precisaria de muitos livros para conseguir dormir aquela noite!

4 de fevereiro de 2013

[407] Episódio 3: Um Bife Para Ártemis

Até que o saldo da noite passada não foi assim, tão ruim. Não passei mal, não vomitei como de costume, dormi tão serena e vazia que nem parecia eu, nem parecia essa massa disforme que chamo de corpo, entupido até o ouvido de sorvete. Sonhei uma coisa esquisita e acordei num sobressalto às 6 da manhã (não sei o que é acordar às 6 desde que eu era... sei lá... gente). Sonhei com mamãe sentada na varanda, sua velha cadeira de balanço e o crec-crec que ela fazia. Uma toalha de crochê no colo e engraçado como todas as lembranças que tenho dela têm crochê no meio. Eu era pequena ainda e ela me dava uns trocadinhos pra comprar linha, agulha, mas com ares de general que comandava um pelotão. Uma grande tarefa pra uma menina, eu geralmente não errava suas encomendas e se errava, noites e noites de desespero me esperavam. Eu precisava muito agradar alguém.

Noutra noite, o sonho tinha sido ainda mais esquisito. Eu recebia uma ligação e me diziam que ela tinha morrido. Corria, apavorada, pela casa grande (no sonho, eu ainda morava na minha verdadeira casa). Chegava na clínica e ela estava lá, rosto frio de sempre, congelado, ainda sem lembrar de mim. Acordei chorando, no colchão do apartamento. Se estava lúcida ao chegar, o tempo se incumbia de me transformar numa doida varrida. Dêem-me dinheiro, senhores, rasgarei-o, só não contem ao seu Lobato, o síndico perverso.

A vida é louca, o mundo é triste:
vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor!
(Mário Quintana)

Mamãe está internada numa clínica psiquiátrica muito bonitinha, tem umas flores na frente. A moça da recepção é sorridente e dou meu rim na pracinha se ela não é interna daquela lugar, cumprindo carga de trabalho em troca da liberdade. Ninguém sorri num lugar como estes. Ninguém gosta de inferno e o hospício (às favas as convenções sociais, doido mora em hospício, clínica de repouso é a puta que nos pariu) é o maior inferno que existe. Eu olho mamãe naquela cadeira, rosto impassível, de quem, em algum momento, preferiu criar um mundo imaginário a enfrentar o mundo real. Toda uma vida, uma história, fora a minha vida, a minha história, se esvaindo naquela camisola horrenda e nos comprimidinhos de gardenal. Ficaram para sempre comigo as lembranças das noites em claro, as malinhas de viagem, ora dormindo na casa de um, ora dormindo na casa de outro, depois que a família Veiga veio tomar a casa. Maldita família Veiga, sortuda família Veiga, levaram nossa história, nossas toalhinhas de crochê. Eu tenho sonhos lindos, atirando no Sr. Veiga, jogando pedra no Sr. Veiga, noite dessas eu batia na cara gorda dele até que um dos seus olhos saltava e batia na parede.

Hoje terei um bom dia, tenho fé. Recebo a primeira parcela do seguro desemprego e ajeito minha vida, adeus dieta pobre, adeus banho gelado, adeus pastel do china. Tal qual Elias, sem Lucilia, vou gritar ao mundo, sorrindo “Faz um bifão pra mim!“*

Hoje também faço aniversário de sem-teto. Há exatos 8 anos, eu deixava minha casa, os batentes daquelas portas, o cheiro de café fresco, o crec-crec da velha cadeira. Depois de alguns meses, mamãe não se aguentou e virou uma outra gente, que batia nas coisas e corria com facas atrás de mim. Eu não gostava dessa fase Dona Maria Louca. Levaram mamãe pra clínica da moça sorridente e não tiraram mais. Eu varei de casa em casa, pensão em pensão, todos os tipos de papais e mamães e queridinha, você é muito bonita, vamos conversar melhor ali no meu quarto. Até chegar nessa mesinha solitária onde escrevo agora. O velho desgraçado caiu no mundo. Quando o dinheiro da venda da casa acabar, ele volta. Tenho deliciosos sonhos com ele. Geralmente, seus olhos também se soltam e batem na parede.


“Here I am waiting for a better day
A second chance
A little luck to come my way
A hope to dream a hope that I can sleep again
And wake in the world with a clear conscience and clean hands
'cause all that you have is your soul“

(All That You Have Is Your Soul - Tracy Chapman)

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* referente à crônica “Relato de Ocorrência Em Que Qualquer Semelhança Não É Mera Coincidência“, de Rubens Fonseca.





1 de fevereiro de 2013

[101] Episódio 2: Eu velhoaro, Tu velhoaras, Nós velhoaramos


- Acorde filho, hoje é seu grande dia. Acorde logo rapaz, hoje você passará de menino para homem. Acorde meu filho, meu grande filho.

Os sons da voz rouca do pai fazem com que o jovem rapaz acorde. Seus olhos se abrem e sua primeira imagem é desse senhor, parado à sua frente como uma estátua de praça pública, alta velha carregando no lugar do rosto uma carranca, uma carranca de olhar sério e penetrante, que ao mesmo tempo assusta e fascina o observador; suas roupas como não poderiam deixar de ser, compunham o ar pesado e solene do grande momento, ao invés do costumeiro pijama branco com listras que seu pai usava todos os domingos, a roupa era a que ele costuma usar para momentos de grande importância: o terno.

O terno verde musgo bem escuro, tão escuro quanto suas intenções, o sapato preto bem lustrado, e o quepe também verde, mas não tão escuro quanto o restante do terno.

O garoto se levanta e vai com ânimo ao banheiro. Lava o rosto, se olha, se vê, se contempla  e se felicita por fazer o que é certo, por dar orgulho ao pai, por ser motivo de orgulho para a família, por ser orgulho para si próprio, por ser coragem, por ser homem.  Célio, este jovem rapaz, se arruma, põe sua melhor roupa, o terno azul escuro, passado e engomado esticado sobre a cama. Ao parar ao lado da porta, sua última olhada ao redor do quarto, ele caminha até a janela e abre as cortinas.

O sol da manhã avança sobre seus olhos, fazendo-os se espremerem; ao abrir os olhos, a rua iluminada, com uma dezena de jovens deixando suas casas, todos com seus ternos bem alinhados, e seus pais ao lado, como que numa procissão, bandeiras em punho, punhos cerrados levantam-se, as mãos, as mãos dos vizinhos se apertam, os corações apertados batem violentamente, as mãos voltam frias e guardam o medo e a esperança , eis que a boca exprime os primeiros desejos de boa sorte, os primeiros beijos, as eternas despedidas. Ao virar-se de sua contemplação, o rapaz, o jovem rapaz, observa o caminhar da luz ao preencher seu quarto, ao iluminar o terno, o meio termo entre coragem e temor.   

Veste-se, caminha até a sala, e para diante do pai sentado que observa a rua e que leva à boca um charuto preto, pesado e fumacento, a mãe vindo lentamente da cozinha trazendo  pequenos e suculentos pedaços de Knodel  e muitas lágrimas para o filho que partia. Duas de suas irmãs sentadas na sala paravam para ver o velho irmão que em alguns minutos partiria.
Acompanhado dos pais Célio sai pela rua e, assim como seus amigos, recebe os cumprimentos e desejos de boa sorte dos vizinhos, dos amigos e de todos os demais moradores da Cidade, que parou tudo para acompanhar a saída dos jovens combatentes, que atravessariam o oceano deixando suas casas para trás, para lutar, lutar pela liberdade, pela honra e por seu país.

Chegando ao porto, o jovem rapaz pega a longa fila, mas nunca só, sempre acompanhado de seus pais orgulhosos. Chegando à ponta da fila, vê o Primeiro e Segundos-tenente da brigada recolhendo as assinaturas dos combatentes, assina seu nome na lista de combatentes que faziam parte do primeiro escalão que partiria para a Itália; saindo do armazém preparado para receber os combatentes a primeira imagem ao fundo era a do grande e imponente General Man, o grande homem que levaria todos aqueles meninos para se tornarem homens, demonstrando sua honra e coragem. Célio vira-se para seus pais e dá um último sorriso, abraça-os e segue em direção a grande rampa, que leva a entrada do navio; no topo do navio, a imagem do grande homem que comandaria o seu escalão, Zenóbio da Costa, agora seu novo general, seu novo pai.

Os olhos se enchem de lágrimas, o jovem rapaz vê seu país ficando para trás, eis que a luz do céu fica cada vez mais forte e forte e ofusca seus olhos, incomoda seus olhos, dói e Célio acorda com a luz forte do sol que vem da janela; é cedo, o velho senhor dormira na poltrona da sala, e seu sono pesado, de sonhos leves, não o deixou acordar.

Saxofone tenor

Célio se levanta sentindo dores, o velho sente dores, dores fortes que doem em todos os cantos de seu corpo, incluído suas costas cansadas. Ele caminha até o banheiro, toma um banho, escova os dentes, penteia o que lhe restou de cabelos brancos.
- Fios inúteis, não entenderam ainda que deveriam ficar na cabeça e não no ralo? Voltem para o seu lugar ou nuca mais os aceitarei de volta... Tudo bem, não os quero de volta mesmo, fios desobedientes. Cada fio a menos, uma preocupação a menos, menos tempo, menos vida, quando não houver mais fios, não haverá mais vida, nem sequer tempo; pois meu tempo já terá passado, e logo eu serei passado.

O velho caminha pelo apartamento ainda pouco iluminado, abre janelas e cortinas, da espaço ao vento e luz, mas tenta evitar os gritos das crianças e o pó da rua.
- Obrigado, querida rua, sua sutileza se mede com pó, mas pó eu já tenho bastante; afinal quem é pó como poderá tornar-se pó um dia? E de que me adianta reclamar vou sair, vou velhoarar com os velhos velhoaradores.

O velho cruza a sala, passando com cuidado pelo tapete que sua esposa mandara trazer do Iraque, lembrança do período de fartura de sua família, e que seguindo ainda após todos esses anos de infinitos avisos o velho continuava a tomar cuidado com a peça rara e cara de sua amada esposazinha.

- Cuidado! Não pise assim, cuidado! Ainda me lembro da unglückliche falando do persa, persa que por sinal eu piso, pois, tapete é, fosse gato eu chutaria o bichano para longe, assim como a bunda da dona.
O velho se arrumou, bem alinhado, com humor detestável e foi velhoarar.

 Trompa, 2 flautins e celesta

Sentado sozinho em um canto da praça, enquanto seus companheiros não chegavam, Célio aproveita para observar a rotina lenta da praça; repentinamente, ele vê se aproximando com um caminhar perdido e preguiçoso o jovem o rapaz da padaria, que viria e o saudaria educadamente, mas lhe chamaria pelo nome errado, como sempre.

- Seu Zélio. O senhor por aqui, seu Zélio, o que faz o senhor com esse traje de gala, sentado aqui sozinho na praça seu Zélio, oia, só o senhor seu Zélio; aliás eu tenho que contar pro senhor to pensando em tá voltando a tá estudando de tanto que o senhor fica falando que eu tenho que tá procurando uma escola pra tá aprendendo mais. O que o senhor tá fazendo que num passo na padoca.

- Sim, meu jovem, estude, sabe, que você tá precisando; todos nós precisamos de conhecimento e outros ainda precisam também de paciência. Pensei em passar na padaria, mas pensei em vir mais cedo para a praça e aproveitar o silêncio, enquanto os velhos não chegam, por isso estou aqui velhoarando solitariamente.

- Entendo seu Zélio, curioso isso que vocês fazem.

- Sim, pode ser chamado de curioso, não fosse trágico.

- Trágico?

- Sim, velhoaramos pois não há mais vida a se viver, meu rapaz, e nesta fase da vida, os medos e desgostos nos afligem como nunca antes na vida.

- E o senhor tem tanto motivo pra desgostar da vida assim seu Zélio.

- Sim, todos temos, mas conforme a idade chega o que se percebe é um aumento substancial do peso que os sentimentos negativos e as más experiências exercem sobre as costas cansadas dos velhos. Neste momento vemos as tristezas da vida não mais como algo a ser superado, não há tempo, pois não é tempo de superação, vemos o conformismo como saída no qual se apoiam todos nossos fracassos e, ainda para mim, que sofri para além do que eu mesmo poderia ter me causado, o peso se lança ainda pior, é viver como Atlas só que ao invés do céu, levo às costas o peso do inferno de uma vida infeliz; nesta vida onde até meus dentes me mordem.

- Que chato seu Zélio. Seu Zélio? Seu Zélio? Tudo bem com o senhor?

Rápido como o apagar da chama de uma vela, escuridão toma conta da visão de Célio...