3 de abril de 2013

[201] Terceiro Episódio: Lc 18, 16


ocava-se o canto final e eu, em fila com os ministros, acólitos e coroinhas, saía do presbitério e me posicionava em frente ao altar para a genuflexão, tudo muito bem sincronizado, como manda o figurino. Ao ajoelhar-me, porém, senti dois puxõezinhos na minha estola, que só foram suficientes pra tirá-la levemente do lugar e fazer com que eu olhasse para trás na tentativa de entender porque alguém a estaria puxando enquanto eu me ajoelhava.

            Virando a cabeça, vi logo em primeiro plano o menino João, com o rostinho banhado de lágrimas, fazendo aquela cara feia que as crianças fazem quando tentam engolir um choro que vem em doses demasiadamente escandalosas; no segundo plano, equilibrando com um toque cômico a dramaticidade do primeiro, estavam os pais do pequeno menino, que foram atingidos pelo meu olhar enquanto corriam (com o máximo de discrição que se pode ter, aliás, quando se corre pelo corredor principal de uma igreja durante a Missa dominical) e pareciam temer que a pobre criança, ainda desprovida do bom senso dos adultos, pudesse ter despertado a fúria deste sacerdote que, não podendo recair sobre seu causador direto, cairia naturalmente sobre os seus genitores.

            Acolhi o menino com um de meus braços e consegui apenas entender umas palavras soltas do que ele tentava me comunicar: intenção, morreu, céu, papai, disse. Levantei e tomei-o pela mão, passando ele então a compor a nossa curta procissão de saída até a sacristia.

            - Já que você está triste, eu vou deixar você sentar na cadeira do padre enquanto eu tiro esse monte de roupa, tá bom?

            Ele assentiu com a cabeça, enquanto esfregava a mãozinha nos olhos muito vermelhos. Ficou ali balançando as perninhas que não podiam tocar o chão, perdido naquela cadeira enorme de estofamento vermelho que devia ser usada no presbitério há alguns anos atrás. Parecia um adulto em miniatura a julgar pelo modo de vestir: calça social preta, com sapatinhos também pretos bem polidos, um suéter cinza sobre uma camisa social de manga longa xadrez e os cabelos impecavelmente partidos ao meio. Eu já conhecia os pais de João; são de participação ativa na vida paroquial e, gozando de uma condição social bastante favorável, não só contribuem com seu tempo e energia, assim como com seu dinheiro para o bom funcionamento das atividades eclesiais. Fui convidado a jantar na casa deles na semana em que cheguei e talvez isso desse intimidade ao menino para me interceptar na saída.

            Pedi a um dos ministros que avisasse aos pais para que não se preocupassem conosco e, já sem os paramentos, fui conversar com o menino.
            - Frei, o Maninho – este era o nome de seu pequeno cão, com o qual dividia o quarto – ficou doente de repente e morreu. Eu pedi papai pra botar o nome dele nas intenções da missa, mas ele falou que não pode. Que bicho quando morre não vai pro céu – e afogava-se nos soluços.

            Não nos ensinam na Filosofia, na Teologia ou em algum outro curso o que devemos falar numa situação destas. Citar Aristóteles e dar-lhe uma explicação pautada na tipologia das almas não traria nenhum conforto. Lembro-me de limpar uma lágrima que já se ia jogar do meu olho, com o cuidado necessário para que João não percebesse que tinha ali um companheiro de tristeza. Eu tinha a responsabilidade de assumir um papel naquele momento: o sacerdote é aquele que, na hora das perdas, orienta com sabedoria e sobriedade – ou pelo menos é assim que um grande número de pessoas nos enxerga, como detentores de um dom inato que vem embutido na vocação, a palavra. Mas a verdade é que, geralmente, mesmo que não tenhamos oportunidade de admitir, sentimo-nos tão impotentes e perdidos como todos os outros. Aliás, talvez até um pouco mais impotentes, pois padecemos de nossa dor particular sem poder demonstrá-la de uma maneira mais pungente e também pesa sobre nossos ombros a responsabilidade de amenizar a dor de quem nos rodeia.
           
            Mas o menininho chorava e era preciso falar. Eu não me importaria de mentir-lhe naquele momento para amenizar sua dor. Uma pequena mentira, dizer que Maninho foi pro Céu e que eles irão se encontrar novamente. Ah, na verdade, se seus pais não tivessem negado a oportunidade de redenção ao cão, seria este o meu discurso. Não o executei para não complicar-me teologicamente. Ser acusado de heresia ainda hoje é problema grande nas fileiras da Igreja e não quero submeter-me a uma investigação doutrinária por parte da Diocese.


           – João, é mesmo verdade que o Maninho não vai pro Céu. Mas seus pais não sabem é que existe um jeito de resolver isso. Se você não se esquecer dele, ele continua dentro de você. Daí quando você for pro Céu, ele vai junto. Agora você não vai mais ouvi-lo latir ou jogar a bolinha pra ele pegar, mas vai lembrar de todas as vezes que brincaram juntos, porque ele está dentro de você. Será que você consegue deixar ele aí dentro até você entrar no Céu?
          – Consigo sim, frei!

            Entreguei-o logo aos pais, dizendo-lhes que seu filho tinha um grande coração, que às vezes corações assim transbordam protocolos e que ele de modo algum havia me incomodado. Ora, se o próprio Jesus deixou-se acessível aos pequenos, que sacerdote poderia lhes negar acesso?

            Agora, já noite, fechado em meu apartamento, recordo do abraço final que com João me agradecera pela direção espiritual mirim. Meu corpo, já tão desacostumado a contatos físicos, é propício a ser grato por tais demonstrações de afeto. Afeto, aliás, é artigo de luxo para mim, que recebo respeito e cordialidade em proporções generosas. Imagino o menino deitado entre seus pais, na cama do casal, enquanto a dor não passar. Os calores trocando de corpo, as respirações próximas, três pessoas unidas pela dor de um deles, pois tinham o dever de superar qualquer dor que fosse juntos. E isso, em última instância, é o que os caracteriza uma família.

            E eu, sozinho, fechado, imaginando de onde vem cada barulho, mirabolando uma maneira de fazer contato com algum vizinho, talvez. Quem sabe aproveitar a falta de luz e pedir uma vela emprestada - apesar de que alguém poderia estranhar um padre não ter sequer uma velinha em casa para acender no seu oratório. Mas já é tarde. O barulho da tempestade me sugere um dilúvio lá fora.
            Na Cidade sempre que chove, chove assim, chove muito, chove forte. Como se todas as lágrimas que os corações de pedra daqui não se permitem derramar fossem derramadas pelo céu em remissão à dureza do espírito de cada um. Pelo menos nesta hipótese, o céu tem piedade de nós. 

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