22 de julho de 2013

[403] Episódio 9: A Filha Pródiga

"Ando cansada de muita coisa."

Pensava Mirella ao sentar-se em seu sofá, na sala, e deixar cair no chão uma carta. Acabara de desligar a TV onde os jornais anunciavam as confusões e vandalismos que vinham ocorrendo na Cidade.

Continuou em suas divagações.

"Quando me vi aqui, nesta Cidade, minha intenção sempre foi a de recomeçar.  Esquecer e recomeçar. Acreditava que depois de tantas andanças poderia esquecer meu passado e recuperar minha lucidez. Durante muito tempo vivi uma vida desgovernada. (Essa palavra vem bem a calhar neste momento). De que me adiantou essa constante preocupação em mudar de endereço se o passado, feito um parasita, me acompanha onde quer que esteja?

"Ando cansada do meu emprego, dos meus pensamentos, de mim mesma. Dessa forma de me governar; preciso protestar e gritar. Quem sabe fazer um quebra-quebra geral dos meus conceitos, regras, sei lá. 

"Que vida é essa que levo?

"Nada de amigos, de vida social. Vivo na tríade: Trabalho-casa-trabalho. Sempre imaginei que depois dos 40 anos estaria com minha vida estabilizada, um companheiro ao meu lado e usufruindo das facilidades que este tipo de vida proporcionaria. Quiçá um cartão de crédito pago!  E o que tenho? Dívidas, solidão, insônia e mais inquietações.

"Quem pode ser feliz assim? Pelo menos consegui me livrar do vício do cigarro.

"Caminhos bifurcados, escolhas erradas.

"Ando muito cansada de tudo."

Levantou-se e recuperou a carta que estava no chão. Fitou-a como se a lesse maquinalmente. 

Em plena era da informatização, Mirella recebia uma carta escrita à mão. Logo que a viu no escaninho das correspondências pode averiguar que se tratava de notícias de seu passado. 

Andando pela casa, sem rumo certo, releu a sentença: “Mirella, seu pai está morrendo. Em seus delírios chama por seu nome. Está confuso. Consegui seu endereço com o Bentinho. Ele veio por aqui visitando a família. Por favor, tente esquecer o que passou e venha ver seu pai. Não sei quanto tempo ainda ele fica vivo. Sua mãe.”

Ao acabar de ler aquelas palavras escritas em um papel tão chinfrim e com uma letra trêmula de quem se aventurava a escrevê-las, percebeu que estava no banheiro, em frente ao espelho. Apoiou as mãos na pia e fixou o olhar apertando os olhos como se quisesse se reconhecer.

O tempo, implacável tempo!

Onde estavam aquelas sardas que a deixavam com cara de menina apimentada? E os seios minúsculos que teimavam em brotar por baixo da camiseta? Onde achar o brilho daqueles olhos cheios de inocência e sorrisos cheios de graça e alegria?

Ficaram nas recordações de uma infância tranquila que não premeditava uma adolescência conturbada.

Sempre fora uma criança agitada, travessa, esperta e cheia de questionamentos. Seus pais, pessoas muito simples e de pouco estudo viviam sem respostas para suas perguntas, o que aumentava sua angústia em querer descobrir o mundo. Essa ânsia de saber crescia paralelamente a sua beleza física. Na adolescência, quando seu raciocínio era mais lúcido, se assim se pode afirmar, tudo piorou. Percebia que aquelas pessoas de sua cidade não lhe entendiam e não acompanhavam seus pensamentos. Não como ela imaginava. Vivia às turras com seus pais. Era filha única, o que piorava a situação. Tivera um irmão mais velho que morreu ainda jovem. Mirella era muito criança quando isso aconteceu e por isso não se lembrava do irmão, a não ser pelas poucas fotografias que existiam na casa. A morte dele estava envolta em mistérios que ela nunca conseguiu descobrir. Parecia que havia um pacto de silêncio entre seus pais e aquela cidade. Eles decidiram enterrar o assunto junto ao túmulo do filho de forma que nunca mais se ouviu falar nada. Mas Mirella, em sonhos, muitas vezes via seu irmão. Terrível como só ela era, exagerava, e dizia vê-lo pela casa andando feito zumbi. Quando comentava tal feito com os pais, os mesmos ficavam apavorados e queriam levá-la para a igreja para que o padre a exorcizasse. Mirella fugia e se escondia até que passasse a ira deles. Nestas horas, ela contava sempre com Bentinho, seu melhor amigo, que lhe dava cobertura. 

Passou então a esconder muitas coisas. Cresceu rodeada de gente preconceituosa e ignorante.

Mirella passou a viver em mundo paralelo.

Ao atingir a maioridade, compreendeu que não pertencia àquele lugar. Foi quando houve o escândalo que a fez deixar a cidade e cair no mundo.

Maldita carta!

Por que voltar? Foi renegada por seus pais! Ela fazia questão de enterrá-los assim como os mesmos fizeram com a morte de seu irmão! Sequer lembrava mais deles. Na verdade, esforçava-se para esquecê-los. Se não fossem pelos sonhos - ou seriam pesadelos?! E agora esta carta que a chamava para uma volta ao passado...

Definitivamente: a vida é cíclica!

Muitas vezes se faz necessário dar um passo para trás para que se possa seguir em frente! Quem sabe indo de encontro ao seu passado ela poderá encontrar respostas para seu futuro?

Quem sabe?

De alguma forma será bom sair um pouco da balbúrdia em que sua vida e a vida da cidade se encontram nesse momento.

Encorajou-se e foi tirar a mala que estava na parte superior do armário.

Espanou a poeira e começou a se preparar para a viagem.

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A Parábola do Filho Pródigo  
"Disse Jesus: Um homem tinha dois filhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-me a parte do patrimônio que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres. Poucos dias depois ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país muito distante, e lá dissipou sua herança vivendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi pôr-se a serviço de um dos senhores daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Entrando então em si e refletiu: “Quantos empregados há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu, aqui, a morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados”. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: “Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho”. Mas o pai disse aos servos: “Trazei-me depressa a melhor (primeira) veste e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também o bezerro cevado e matai-o; comamos e festejemos. Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido e foi achado”. E começaram a festa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o reencontrou são e salvo. Encolerizou-se ele e não queria entrar; mas seu pai saiu e insistiu com ele. Ele, então, respondeu ao pai: há tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um cabrito, para festejar com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho, que gastou os teus bens com as meretrizes, logo lhe mandas-te matar um novilho gordo! Explicou-lhe o pai: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; convinha, porém, fazermos festa, pois que este teu irmão estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi achado”. Lucas, 15:11 a 32

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