Os dias que sucederam o incidente
na janela vizinha foram de uma busca por saber quem seriam aquelas duas
mulheres. O apartamento seria o 203 ou 204 do edifício com entrada na rua ao
lado, seguindo a lógica da numeração e supondo que haviam dois apartamentos por
andar, o que foi comprovado numa rápida passagem pelo interfone daquele prédio.
Lêda lamentou o interfone não ser como neste blog, onde, ao lado do número,
estaria o nome do morador. Teria de arranjar um jeito de descobrir por si só.
Mas qual? Que meios disporia uma
senhora da sua idade? Passava o seu tempo livre, que não era pouco, pensando
nisso, numa variação entre um verdadeiro frenesi e uma moderada depressão ao
tomar ciência do quão solitária era por ter a necessidade de se intrometer na
vida dos outros. Não era uma velha futriqueira. Nunca fora. Estaria se
tornando? Porque não, não era empatia e compaixão que estava sentindo pela
moça. Era curiosidade. Apenas. Coisa de velha.
Era sábado e saiu para ir à feira
que trancava a rua detrás da sua. Pegou a sacola e foi comprar seus mamões como
fazia toda semana. Estavam caros, cada vez mais caros. Talvez devesse se render
ao iogurte que, milagrosamente, reduzia o inchaço na barriga e, caro por caro,
ficaria, assim, com um café da manhã de madame. Foi quando passou por uma banca recheada e
resolveu comprar uns tomates - por estarem bonitos, apesar de caros - que a viu.
Não reconheceu o rosto, os traços,
a fisionomia. Fixou-se numa marca de arranhão no pescoço. Era ela, sem dúvidas,
era ela. Não que essa marca, despois da briga presenciada, fosse determinante
para o reconhecimento da moça agredida, mas algo estalou e disse: era ela! Muito bonita sob o
dia iluminado, Lêda reparou em traços de juventude que não via há tempos.
Quando saía à rua, não olhava mais para as pessoas. Quando parava frente ao espelho,
juventude nenhuma via mais. Estava desfamiliarizada com isso.
A moça escolhia batatas e foi
justamente o que Lêda quis comprar também, abandonando os tomates. Enquanto dividam
o espaço, separando as feias das bonitas, as grandes das pequenas, cada uma
escolhendo a seu gosto, disse: “Pensei que feira fosse coisa de velha, mas
vejam que não!”. A moça sorriu: “Aqui as coisas são mais bonitas que no
supermercado. Apesar de tudo estar caro, cada vez mais caro”.
Pode-se dizer que, de certo modo
e em outra ocasião, isso seria paixão à primeira vista.
Lêda já estava entupindo o
segundo saco de batatas, sorrindo sem perceber, quando notou que a jovem
comprava muito pouca quantidade de cada produto e parecia já estar finalizando as compras. Não sabia mais o que fazer
para poder ter mais informações sobre a moça, para ter certeza de que ela era
ela. Não queria começar a perguntar nada ali na feira, sem a conhecer. Não
era, como sabemos, uma velha futriqueira. Resolveu, então, criar a tática de ficar de olho enquanto,
ao contrário, comprava, rápido, muitas coisas. Sabendo que iriam percorrer quase o mesmo
caminho até em casa e que qualquer um ajudaria uma pobre senhora a carregar
suas compras, ainda mais uma jovem simpática com poucas coisas na mão, não teria erro: haveria a oportunidade, enfim, de iniciarem uma conversa.
Mas muitas compras na feira
implicava em muito dinheiro, coisa que Lêda não tinha pego em casa antes de
sair. Além disso, aqueles quilos de batata iriam fora, o resto que comprasse em
grande quantidade também por não haver quem desse conta, sua consciência reclamaria, pessoas passando fome,
que planeta vou deixar para meus netos? etc. O plano não daria certo. Foi quando viu as melancias.
Os cabelos lisos e castanhos da
jovem já brilhavam ao sol cruzando a última barraca da feira. “Duas melancias,
as maiores!”. Pagou por elas e apertou o passo. Apertou o passo o quanto a
idade deixou. Arqueada, virou a esquina. Estavam a meia quadra de distância uma
da outra: a jovem com poucas compras; a velha com duas melancias. A distância,
apesar do esforço de Lêda, só aumentou com o passar do tempo a ponto da moça virar novamente a esquina e dela não
conseguir vê-la entrando no prédio onde, até então, apenas sua imaginação
tinha certeza de que ela moraria. A brilhante ideia fez com que ela não
conseguisse se certificar nem de que a moça morava, de fato, no edifício
vizinho.
Lêda e sua frustração chegaram em
casa e atiraram as melancias no chão, tomaram duas aspirinas e sentaram-se
curvadas, com dor, no sofá. A noite seria longa e, no café, teriam melancia.
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