14 de março de 2013

[106] Episódio 4 – Coisa de velha


Os dias que sucederam o incidente na janela vizinha foram de uma busca por saber quem seriam aquelas duas mulheres. O apartamento seria o 203 ou 204 do edifício com entrada na rua ao lado, seguindo a lógica da numeração e supondo que haviam dois apartamentos por andar, o que foi comprovado numa rápida passagem pelo interfone daquele prédio. Lêda lamentou o interfone não ser como neste blog, onde, ao lado do número, estaria o nome do morador. Teria de arranjar um jeito de descobrir por si só.

Mas qual? Que meios disporia uma senhora da sua idade? Passava o seu tempo livre, que não era pouco, pensando nisso, numa variação entre um verdadeiro frenesi e uma moderada depressão ao tomar ciência do quão solitária era por ter a necessidade de se intrometer na vida dos outros. Não era uma velha futriqueira. Nunca fora. Estaria se tornando? Porque não, não era empatia e compaixão que estava sentindo pela moça. Era curiosidade. Apenas. Coisa de velha.

Era sábado e saiu para ir à feira que trancava a rua detrás da sua. Pegou a sacola e foi comprar seus mamões como fazia toda semana. Estavam caros, cada vez mais caros. Talvez devesse se render ao iogurte que, milagrosamente, reduzia o inchaço na barriga e, caro por caro, ficaria, assim, com um café da manhã de madame. Foi quando passou por uma banca recheada e resolveu comprar uns tomates - por estarem bonitos, apesar de caros - que a viu.

Não reconheceu o rosto, os traços, a fisionomia. Fixou-se numa marca de arranhão no pescoço. Era ela, sem dúvidas, era ela. Não que essa marca, despois da briga presenciada, fosse determinante para o reconhecimento da moça agredida, mas algo estalou e disse: era ela! Muito bonita sob o dia iluminado, Lêda reparou em traços de juventude que não via há tempos. Quando saía à rua, não olhava mais para as pessoas. Quando parava frente ao espelho, juventude nenhuma via mais. Estava desfamiliarizada com isso.

A moça escolhia batatas e foi justamente o que Lêda quis comprar também, abandonando os tomates. Enquanto dividam o espaço, separando as feias das bonitas, as grandes das pequenas, cada uma escolhendo a seu gosto, disse: “Pensei que feira fosse coisa de velha, mas vejam que não!”. A moça sorriu: “Aqui as coisas são mais bonitas que no supermercado. Apesar de tudo estar caro, cada vez mais caro”.

Pode-se dizer que, de certo modo e em outra ocasião, isso seria paixão à primeira vista.

Lêda já estava entupindo o segundo saco de batatas, sorrindo sem perceber, quando notou que a jovem comprava muito pouca quantidade de cada produto e parecia já estar finalizando as compras. Não sabia mais o que fazer para poder ter mais informações sobre a moça, para ter certeza de que ela era ela. Não queria começar a perguntar nada ali na feira, sem a conhecer. Não era, como sabemos, uma velha futriqueira. Resolveu, então, criar a tática de ficar de olho enquanto, ao contrário, comprava, rápido, muitas coisas. Sabendo que iriam percorrer quase o mesmo caminho até em casa e que qualquer um ajudaria uma pobre senhora a carregar suas compras, ainda mais uma jovem simpática com poucas coisas na mão, não teria erro: haveria a oportunidade, enfim, de iniciarem uma conversa.

Mas muitas compras na feira implicava em muito dinheiro, coisa que Lêda não tinha pego em casa antes de sair. Além disso, aqueles quilos de batata iriam fora, o resto que comprasse em grande quantidade também por não haver quem desse conta, sua consciência reclamaria, pessoas passando fome, que planeta vou deixar para meus netos? etc. O plano não daria certo. Foi quando viu as melancias.

Os cabelos lisos e castanhos da jovem já brilhavam ao sol cruzando a última barraca da feira. “Duas melancias, as maiores!”. Pagou por elas e apertou o passo. Apertou o passo o quanto a idade deixou. Arqueada, virou a esquina. Estavam a meia quadra de distância uma da outra: a jovem com poucas compras; a velha com duas melancias. A distância, apesar do esforço de Lêda, só aumentou com o passar do tempo a ponto da moça virar novamente a esquina e dela não conseguir vê-la entrando no prédio onde, até então, apenas sua imaginação tinha certeza de que ela moraria. A brilhante ideia fez com que ela não conseguisse se certificar nem de que a moça morava, de fato, no edifício vizinho.

Lêda e sua frustração chegaram em casa e atiraram as melancias no chão, tomaram duas aspirinas e sentaram-se curvadas, com dor, no sofá. A noite seria longa e, no café, teriam melancia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário