25 de agosto de 2013

[204] Episódio 6: Do lado de fora, do lado de dentro.

''The longer you look at an object, the more abstract it becomes, and, ironically, the more real.''
Lucian Freud

(Sem assunto)


Jorge,


eu estou preocupada com você, e isso não é novidade. Também não há de ser novidade o cinismo que espero receber de volta. Já passamos por isso um sem número de vezes: você vai pensar que quero controlar sua vida, vai fazer cara de vítima da Inquisição Espanhola porque busco respostas, porque quero ajudar, porque não suporto ficar de fora. Sim, eu sou aquela que sempre vai achar insuportável ficar do lado de fora mesmo sem jamais ter sido convidada a passar da porta. Mas se não consegui mudar meu jeito depois de tanto tempo, bem, daqui pra frente é ladeira abaixo.

Você não dá notícia há meses. Que não queira falar comigo eu até entendo – e perdoo, como já o fiz tantas outras vezes. (Como minha irmãzinha é boa, como é abnegada”- eu me lembro muito bem do roteiro das nossas brigas, quase não preciso de você para rearranjar nossos argumentos e continuar indefinidamente). Mas você parou de responder os telefonemas da Vivi, e isso é grave. Ela me contou que mais de uma vez bateu à porta e sabia que você estava lá dentro, e mesmo assim não a atendeu.

A única forma de saber que você não escorregou no banheiro e foi devorado pela fauna que habita as caixas de pizza da sua sala foi checar no mercado da esquina se as compras continuam a ser entregues na sua casa. E continuam. Meu principal informante sobre a sua vida nos últimos tempos é um moleque espinhento de 16 anos que parece não conseguir se decidir sobre qual de nós dois é o mais esquisito. Da última vez que me vi dando 10 reais para o guri me dizer que “tipo, ele tava magro a vera e caladão” percebi (antes tarde do que nunca) que isso não estava certo, não podia estar certo. Fomos ambos longe demais.

Somos só nós dois nesse mundo. Nós dois e a Vivi, mas fundamentalmente nós dois, desde que a mãe me levou para tomar sorvete no parque e me explicou que eu ganharia um irmão e que eu teria de ajudar a cuidar dele, porque ele seria pequeno e indefeso e precisaria de uma irmã forte e corajosa para protege-lo do mundo. É verdade que esse é o típico papo das mães para aumentar a autoestima dos filhos mais velhos que estão prestes a perder o monopólio das atenções familiares, mas eu acho que jamais consegui me desprender da gravidade do compromisso que eu havia assumido, ainda que com a cara lambuzada de doce. Desde aquela tarde em que sequer se notava a barriga da mamãe eu sempre pensei em você como meu irmãozinho pequeno. E é por jamais conseguir te enxergar de outra forma que talvez você me odeie – eu sei bem como você se sente em relação a qualquer tipo de autoridade, real ou fictícia, que tente legislar sobre você.

Seja como for, não nos afaste. Quer dizer, eu você não vai conseguir afastar mesmo, por mais que tente. Sou a Senhora Toda Poderosa Controladora Das Vidas Alheias, lembra? Eu sou aquela que vai ficar esperando, sim senhor. E bisbilhotando sua vida, e não deixando você se esquecer de que, ao contrário do que pensa, você não está sozinho nesse mundo. Mas a Vivi, não a afaste. Você a está magoando e eu não sinto apenas por ela, mas pelos dois. Estou aqui do lado de fora, sempre aqui, para sempre, seu merda. Se quiser sair e vir brincar qualquer hora é hora.
Heloísa.






RE: (Sem Assunto)

Helô,

eu sei que você vai ficar mais preocupada do que se eu não respondesse nada, ou respondesse com alguma alegoria obscura que eu sei e você sabe que ninguém mais entenderia, e que serviria apenas para me dar a palavra afinal sobre o assunto importantíssimo que é a minha vida e como eu a estou desperdiçando. Mas a verdade é: você está certa. Pronto, você tem a declaração por escrito, pode me mandar internar. Não era isso o que você queria?

Não, não era a minha intenção usar qualquer tipo de ironia, é apenas a força do hábito. Se você diz que não consegue mais se consertar, imagine eu. É que se não a ironia, então o quê? A história de como tenho traduzido o mínimo possível para pagar a conta de luz e a de internet, e como no resto do tempo eu fico olhando para o teto, sem a menor paciência para dormir ou qualquer vontade de me mexer? Ah, você quer mesmo saber que eu não troco de roupa há já não sei quantos dias? Que seja, que seja. Vou deixar a ironia atrás da porta, talvez isso a faça feliz. Não, isso também não é o que eu queria dizer. Tento de novo: talvez isso me faça feliz, ou um pouco menos apático. Foi uma dificuldade me decidir por responder seu e-mail, mas agora que comecei é como se entrasse de repente um pouco de ar fresco pelas janelas fechadas. Acho que eu preciso conversar, sim. Me desculpa.

Eu nem sabia o quanto, mas tem sido muito difícil desde que a Cristina me pôs para fora de casa. E não é nem tanto pela Cristina-Cristina, sabe, acho que é a reação acumulada por todas as Cristinas que vieram antes, namoradas ou planos, tudo o que o mundo-Cristina das relações e dos compromissos – para além de tudo o que eu queria e que, de repente ou se esfarelava na minha mão ou não me importava mais. Achava que, com o apartamento novo, também seria fácil alugar uma nova vida. Mas não. A sensação foi a de ir desacelerando aos poucos, até parar completamente. No início eu achava que era apenas uma daquelas minhas fases mais melancólicas em que não sinto vontade de ler, de sair de casa ou de falar com ninguém. Todo mundo passa por isso, embora nem todos possam se dar ao luxo de, digamos, se isolar por um fim de semana inteiro. Morar sozinho, eu pensava orgulhoso desse meu novo status, tinha lá as suas compensações.

Mas o fim de semana virou duas semanas inteiras, e depois um mês e por fim dois. Deixei o celular descarregar e a conta vencer, já que faço os contatos com a editora via e-mail e as compras online. As únicas criaturas vivas com quem tinha breves contatos era o seu espiãozinho cheio de acne e a Cotoco, a lagartixa que divide o apartamento comigo e que nesse meio tempo até restaurou o rabo original que eu sem querer arranquei por descuido, assim como faço com todas as pessoas que me cercam, mas essa já é uma outra história e eu sinto que estou me perdendo.  

Quando o tempo parou de vez eu percebi que a Vivi estava batendo na porta e implorando para que eu abrisse, cantando músicas que eu considero particularmente irritantes, meio que adivinhando que só assim eu talvez tivesse forças para sair da cama e xingá-la por ser uma pirralha tão adoravelmente perversa que ela é. Acontece que ela é ainda uma criança e não merece ser exposta ao refugo de tio que deu o azar de ganhar na loteria genética. Tive vergonha do meu estado, da minha casa, do meu ânimo e do amor que eu não me lembrava que existia porque, é claro, estava como sempre com a cabeça enfiada dentro do meu umbigo exercitando aquela velha autocomiseração que você sempre criticou em mim. E adivinhe de novo: você está certa, sua vaca prepotente. Pelo menos eu consegui te surpreender, certo? Ao menos isso.

Você disse que é sempre a pessoa que está do lado de fora e que odeia isso, e eu também tenho que concordar. Nunca te deixei entrar, não de verdade, mas não pelas razões que você pensa. Não te odeio, sua maluca, muito pelo contrário. Sou incapaz de me ressentir com seu amor tirânico e potencialmente castrador que você sempre tentou me enfiar goela abaixo. Ok - talvez eu já tenha me ressentido, mas isso é passado. Hoje em dia gosto de atiçá-la do mesmo modo que fazia aos 5, aos 10, aos 15 para ver o quanto mudamos e como, apesar disso, certas coisas continuam aparentemente iguais.

Embora eu não possa ter memória da tarde em que você prometeu à mãe que cuidaria de mim, mas juro que posso quase vê-la com seus shorts curtos, sua franja grossa e os olhos escuros muito sérios, apesar de todo o grude do sorvete. E eu admiro que você tenha se comprometido tão fielmente com uma vida que mudaria completamente a sua e a qual você poderia simplesmente ignorar ou fazer birra, como qualquer criança ciumenta tem direito nesse mundo. Ter se tornado a pequena protetora de um serzinho que você até então não poderia conhecer ou amar é algo admirável, embora eu sempre tivesse dito justamente o contrário – que você era na verdade capacho da mãe, carente de atenção, a perfeição em forma de filha, mãe, irmã, esposa, mulher. Eu sou um merda mas você, convenhamos, é um pé no saco com seu verniz de infalibilidade. Como não me rebelar?

Talvez seja por isso que fui mais insuportável com você do que com todas as outras pessoas. Acho que eu queria saber até onde eu podia ir. Testar esse laço que nos prende até que você finalmente dissesse “Cansei dessa porra, vou cuidar da vida”, mas você nunca disse – não importando o quão escroto, estúpido, arrogante e cretino (meu novo insulto favorito, nem pergunte) eu fosse. E se eu não te deixei entrar por todos esses anos e mesmo pelos últimos meses é simplesmente porque não queria que você visse que desperdiçou esse tempo todo de vida lutando pelo tão pouco que eu sou.

Mas você não vai desistir, né? Ao seu modo – e de um jeito muito mais funcional para o “mundo real”, devo dar o braço a torcer – você é tão perturbada quanto eu. Então é isso, desisto eu. Não tenho coragem para sair e brincar: mal consigo terminar esse e-mail, o gás de súbito acabou. Mas olha, vou destrancar as portas. A do apartamento e todas as outras. Se você quiser entrar, é só virar a maçaneta. Se era acesso ao lado de dentro que você queria, sinto muito, mas você acabou de conseguir. Desculpa, desculpa mil vezes, desculpa por tudo, vem, vem logo, por favor.

J.



21 de agosto de 2013

[502] Episódio Seis: O Passarinheiro

Paolo, o pai que procuro não é você. Tenho o seu carinho e me lembro de seus conselhos, de suas histórias...
Paolo, o meu amor trazido de fora da carne para dentro do coração. Quando se casou com minha mãe, abraçou-me como sua...

Lembro-me de seu jeito descompromissado, um tanto alienado, um cuidador de passarinhos...


MEU PASSARINHEIRO

E lá vem ele, com pássaros raros, radiante, encostado em um canto, cercado por suas gaiolas belíssimas, vendendo ilusão. Enquanto espera, pensa... Pensa se sabe pensar...

Não adianta esconder o que está à vista: o cansaço, o desalento, a acomodação, o desânimo, a tristeza da alma contida em um corpo trincado, trancado, trocado pelas emoções conturbadas.

Não adianta pensar se não fizer acontecer. As orações muitas vezes parecem vãs e a vontade de fugir surge, e a força externa do mundo sobressai ao eu, engolido pelo desejo, pelas vontades de fazer o que não se pode em função de...

Passa-se o tempo e este tempo parece curto para a desculpa do não fazer. A fuga se engrandece e fica nas palavras o que deve ser... E não se faz... E não se modifica em alegria o que incomoda o espírito tumultuado em fase de busca...

A lamentação passa a ser o primeiro comportamento da falta do movimento de mudança, e o medo o acompanha. Por quê? Talvez porque a transformação seja inútil, ou improvável, ou impossível...

O meio termo não é suficiente e o fazer se torna utópico diante dos olhos do querer... Cai na apatia e entrega-se ao seu dia-a-dia sem graça e por obrigação. O corpo amolecido entorpece e embebeda a vontade de... e no marasmo em que se encontra, digere o tempo de não viver.

Questionar é um começo, mas não é a solução. O aprender é uma forma de tentar, mas não é nada se a prática não acontecer. Imediato seria o momento da mudança para apagar a angústia que toma conta do peito e cala a voz que grita, interna, e mata aos poucos a esperança de ter, ainda nessa vida, uma felicidade real e um pouco mais duradoura.

E o tempo compartilha com o não-fazer e apaga o desejo de querer transformar, e ser, e viver, e... o que parece fácil diante de outro olhar...

Não se mede a dor da inércia... E o choro contido se retrai, as lágrimas engolidas esperam a hora de, trancado no quarto, se permitir sentir o que é repreendido, inaceitável, incompreendido...

[...] [?] [...]

E lá vai o passarinheiro, mais uma vez, quando o choro se esgota, a alma se convence da passividade, vendendo a liberdade, trancada em gaiolas, perdido pelos cantos dos curiós, bem-te-vis, sabiás...



Meu Paolo, como estará você? Vou procura-lo. Ligarei mais tarde. A saudade abrandará e ouvir sua voz será um alívio para as minhas preocupações.

17 de agosto de 2013

[502] Episódio Cinco: Greve dos professores




Escola em greve. Manifestações nas ruas. Dividida entre a luta por melhores condições de trabalho e a espera dos alunos pelas aulas que não têm. Participo das assembleias. Há momentos em que a revolta e a vontade de desistir são grandes. Os vandalismos vêm se tornando cada vez mais frequentes e o movimento perdendo sua força. Muitos amigos enfrentam a polícia agressiva que se faz boazinha e abusa de sua condição de autoridade.

Ontem, um silêncio incômodo tomou conta da avenida onde os professores se encontravam. Calados, andávamos em filas organizadas em direção ao palanque em que alguns líderes nos esperavam juntos com artistas e repórteres que apoiam e valorizam o evento. De repente, os PMs interromperam a caminhada, bloqueando a rua, impossibilitando-nos de prosseguir. Não havia gritos nem qualquer tipo de pronunciamentos, estávamos como em procissão.


Ao fugir da confusão armada pela arbitrariedade policial, fui atingida nos olhos pelo spray de pimenta. Cega e com muitas dores, corria de um lado para outro sem destino certo, até que fui arrastada por alguém até a portaria de um prédio onde fui socorrida. Nada mais ardia do que a covardia que corroía os brios de quem sabe de seus deveres e deseja ter, garantidos, seus direitos.

Passaram leite em meus olhos e os lavaram com soro. Sem enxergar por um bom tempo, tomada de aflição e rebeldia, queria sair dali e seguir, mas não conseguia. Pessoas generosas me acudiram, tentavam me acalmar os ânimos e me perguntavam onde eu morava, com quem eu estava, se queria que me levassem até a casa...

Eu, atordoada, pensava nos ensinamentos de minha vó. Aprendi o respeito como base de uma sociedade justa, solidez de um vínculo de confiança... Minha Eloah era sábia, mas naquele instante, tudo que me ensinara parecia em vão. Eu, em passeata, respeitava os limites da cidadania participativa ativa, porém ordeira, agia de forma civilizada e fui abatida pela ignorância de um poder autoritário que se diz democrático.

Ouvia o espocar das bombas e me recordava, também das histórias do meu vô Samuel sobre as fugas hilárias e sofridas nos tempos da guerra. Sentia-me em um campo de batalha, perdidamente só, entre companheiros pacifistas que se preocupavam em ajudar sobreviventes. Órfã, engolindo meus ideais, digerindo, à força, tamanha estupidez.

Recuperada, agradecida aos que ficaram ao meu lado e me acolheram, retornei ao meu ninho, onde descanso meu corpo, abrigo minha alma, mantenho-me protegida dos pensamentos e lembranças maléficos aos meus sonhos de uma educação pública de qualidade, de alunos pensantes, de uma aprendizagem centrada em significados reais à vida de quem precisa saber ler o mundo, encontrar meios de compreendê-lo e transformá-lo. Veio-me à mente as palavras de Paulo Freire.

“Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua "generosidade" continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça.”

 Logo, um bom banho, um leite quente - Ih! Nem falei: comprei um micro-ondas! - e minhas orações me trariam à calma novamente...


O meu colchão me aguardava, e no sono dos justos, o descanso. 

Amanhã? Deixei que o alvor do dia brilhasse em minha janela antes de qualquer pressuposição ou planejamento. Quem sabe despertaria animada e retornaria às assembleias em prol do retorno às aulas. Os alunos precisam de seus professores presentes para que possam entrar e contato com o sabor do aprender.

15 de agosto de 2013

[201] Quarto Episódio: Hermínia

ona Wilma, mulher admirável e dedicada às coisas de Deus. Acharia que vive uma vida imaculada se não lhe tivesse atentido umas duas confissões. Tão prestativa, descobri que além das várias funções acumuladas, ela também é do "Departamento de Estatísticas Paroquiais". Tendo seus primeiros resultados, ligou-me num domingo à tarde, antes da missa das seis:
- É que eu tenho percebido que, desde que o senhor assumiu nossa paróquia, houve uma diminuição na procura pelas confissões...
- Houve? Acho realmente uma pena, D. Wilma. Verei o que posso fazer para tentar amenizar isso usando as homilias.
- Oh, sim, faça isso! O senhor já deve estar acostumado com essa situação, não é?
- Não. Esta é a primeira paróquia que assumo. Estou acostumado a pouquíssima coisa.
- Hum... é que, Frei, principalmente os mais jovens podem ficar constrangidos de falar certas coisas, com todo respeito, a um homem jovem e bem apessoado.
- Imagino que sim. Verei o que posso fazer e até mais
.
Não que eu tenha imaginado uma vida de emoção no sacerdócio algum dia. Talvez quando pensei em ser capelão, mas acabei por não tentar.
O correr das horas e da solidão me fez retomar meu "instrumento litúrgico proibido", mas que tem um simbolismo maravilhoso, similar ao do turíbulo aliás: meu maço de cigarros. Deus e meus Marlboro filtro-vermelho têm sido minhas companhias constantes. Fumo sempre na pequena área ao fundo do meu apartamento. Reflito e, com a fumaça, espero que meus reflexões cheguem a Quem as possa ouvir.                                              
                             

Depois de ouvir pessoalmente mais uma vez o relatório estatístico e cumprimentar as pessoas na saída da paróquia, comecei o regresso ao meu apartamento. Esperei um ônibus que por lá passasse não mais do que dez minutos; decidi, então, andar.
A Cidade é feita de camadas, descobri. Alguma relação estranha entre tempo e espaço. Embrenhei-me numas ruelas em que há
 uns sobrados, onde provavelmente há muito tempo havia comércio nos estabelecimentos térreos, pequenos comerciantes morando sobre eles e escravos no porão. Os mesmo postes que iluminaram este passado agora iluminam uma boa quantidade de gente jovem, que festeja por alguma razão nos vários bares pequenos que se espalham na rua ziguezagueada. As formas, que não mais dizem respeito ao presente, foram invadidas por outras funções para continuarem existindo, de algum modo.
Tive vontade de sentar um pouco ali e tomar alguma coisa. Pensei no risco. Levei a mão ao pescoço numa ameaça de retirar a clesma, que me incomodava como uma coleira. Resisti. Procurei apenas um lugar para assentar e, atendendo-me rapidamente o garçom, pedi uma taça de vinho. Seco.
Meu coração deu um sobressalto quando, do meio da fumaça que eu expelia à minha frente, sentou-se alguém à minha mesa. "Dona Wilma!", empalideci. Mas Wilma não tinha chifres.
- Acho que estamos indo pra mesma festa - era um voz uniforme e despreocupada, acompanhada por sorriso de lascívia.
- Talvez - disse eu, desconcertado - Crise de identidade? Não vemos todos os dias esse híbrido de anjo e demônio por aí.
Ela acariciou as pontas dos chifres vermelhos, ajeitou na cadeira suas asas de penas brancas. Eu ajustei a clesma.
- Não seja tão dualista, homem! Por que não posso ser os dois? Ou algo além dos dois? - apoiava o rosto esguio nos punhos e me olhava fixamente - mas entendo se tiver alguma preferência pela parte do anjo.
- Nunca fugi dos demônios, desde que eu possa saber seus nomes.
- Pois prometa não me exorcizar. Sou Hermínia.
- Frei Otávio, prazer - e apertei-lhe a mão branca.
- Otávio, pare de levar a sério esse personagem, ainda não estamos na festa.
- Não é personagem, Hermínia, sou mesmo um frei.
Ela riu desconcertadamente e me encarou um pouco depois. Parecia não querer cair em alguma pegadinha, mas aceitou minha revelação depois de observar meu modo de portar.
- Meu Deus, desculpe... eu não pensei que era padre de verdade... eu não... ah, que vergonha!
- Se achasse que eu era mesmo padre, não teria vindo falar comigo, não é?
- Exatamente - assentiu segura, reclinando a cabeça.

- Não imagina como uma vida em que as pessoas não podem chegar até você é chata, Hermínia.

12 de agosto de 2013

[502] Episódio Quatro: Saudade


Quero o cheiro do jasmim exalando pelo ar! O gosto da carambola, mordida com força, apetitosa, e o suco azedo a escorrer pelo canto da boca cheia de prazer por apreciar o macio da polpa amarelo-esverdeada da fruta de vez tirada do pé. O abio! O jamelão! As mãos molhadas, tingindo de infância a roupa de algodão...

Quero ouvir o latido do cachorro Bob chamando pra brincar de correr pelo quintal... O cantarolar da velha Doralice, negra de pele brilhante, gorda, bonita e sestrosa, enquanto cozinha, na lenha, o doce de jenipapo... O grito da araponga... O falatório do papagaio... O som do passarinho que sai do relógio da sala de estar...

Quero ver o beija-flor parado me admirando a admirá-lo na janela do sobrado... Espiar os moços bonitos que passam na rua do mercado em frente à casa da vovó... A banda tocando marchinhas a caminho do caramanchão da praça todos os domingos... As crianças na rua... Os pregoeiros nos portões, oferecendo o que sempre falta na hora de preparar o jantar...

Quero o sossego das tardes de outono... O brincar na rede amarrada a duas árvores do quintal... Sentir o chão de terra batida nos pés descalços a percorrer o jardim nas tardes quentes de verão... O colo da mãe da mãe Eloah que tanto me falta... A atenção, mesmo desmiolada, de Paolo, aquele pai-padrasto sempre presente... O carinhoso abraço da Shak... Deixar-me sentir saudade daqueles que não se afastam dos meus pensamentos...

Quero o querer sempre até não poder querer mais... Quero sentir o coração acelerar e o pulsar ansioso do não pensar... Quero a espontaneidade do fazer... Quero a despreocupação do saber ter que ser... Quero poder fazer o que desejar... Quero a saudade nostálgica do que na memória está..


10 de agosto de 2013

[502] Episódio Três: Vazios do coração



As paredes pintadas, pouco a pouco, vão dando vida ao apartamento. Um colchonete, umas roupas de cama, alguns livros, meu notebook e minhas malas... os únicos objetos que tenho no momento. As mobílias virão um dia...


Há coisas minhas guardadas na casa de Eva...    

Largo o pincel, abandono por instantes as tintas, os rolos, a aguarrás... Penso nela. Penso em Eva Nigri, irmã do pai adotivo de minha mãe! Pessoa que muito nos ajudou, reconheço, mas, até hoje, através de seus comentários maliciosos a respeito da vida de Shak, me deixa com uma sensação de obrigação emocional doentia pelo que fizera. 

Eva era bem mais nova que meu vô Samuel. Casada, com uma família bem estruturada e financeiramente equilibrada, primeiro trouxe minha mãe e a ajudou muito.  Shak cursou a universidade de Belas Artes, se formou, mas trabalhou para a tia como forma de colaborar nos trabalhos domésticos e poder garantir sua sobrevivência, já que seus pais não podiam mantê-la aqui no Brasil.

Passado um tempo, Eva me trouxe, de certa forma me afastando da tristeza em que se tornou a chácara lá em Portugal depois das mortes subsequentes da vó Eloah e da minha mãe. Mas me separando também de Paolo, meu padrasto, irmão dela que, ao se casar, deixou certa amargura na família.

Volto aos pincéis... Não quero pensar nisso porque não me faz bem. Traz-me a lembrança do preconceito enfrentado pelos dois, o que vivenciei bem de perto aconchegada aos carinhos e encantos da minha vó quem eu considerava como minha mãe de verdade.


Envolvida em meus pensamentos não consigo pintar o rodapé. Ali, a lata de tinta branca. A mesma tinta respingada pelo chão, escorrida na porta, deixando aparente a minha inexperiência na arte de pintar paredes. O pano ressecado e endurecido, embebedado de removedor, uso para limpar toda aquela sujeira. Tudo para desprender-me daquele tempo que teima em não e deixar em paz.


Levanto e vou à janela. Lá vem a consciência novamente atentando meu juízo: “Há um ano resolveu sair da casa de Eva e ir morar sozinha, mas foi ela quem lhe deu a oportunidade de estar nessa cidade e refazer sua vida”. Olhei para a lua daquela noite calorenta...

Não poderia deixar de lado o que minha mente acirrava e acendia naquele instante. Não havia como continuar vivendo em um lugar em que os desentendimentos familiares iam se tornando mais frequentes e tanta amargura guardada, todo aquele disse me disse rancoroso, nada mais fazia sentido.

Cada um faz de sua vida o que considera bom para sua vida. Concorda? E quem sou eu para julgar se o que Shak e Paolo escolheram para eles teria sido bom ou ruim... Garanto que, mesmo distante, sabia que eles eram felizes.
Não procuro Eva que também não me procura. Mas tenho maior apreço pelo que fez e sei que preciso superar as barreiras da vaidade e do orgulho para rever esse sentimento que, às vezes, me corrói e me entristece, deixando-me ainda mais solitária do que já sou.

Prefiro, no momento, dizer-me só, assumindo a solidão íntima que me acompanha desde que nasci.

O apartamento... Ah! Está quase todo pintado, o chão eu limpo rapidinho... E é certo: nem muitas mobílias ocupam os vazios do coração.

[505] Episódio 8: Na Rua, na chuva, na fazenda

                O sol de inverno brilhava no céu. Monstro colocava a cabeça para fora da janela, fazendo o pouco pêlo que tinha se balançar contra o vento. Meu pouco cabelo também se balançava enquanto eu o segurava em meu colo. Sara dirigia ao meu lado silenciosamente e Daniel lia gibis no banco de trás.
                Férias em família? Fora isso que Sara me propôs, e eu sugeri a fazenda dos meus avós, não tão distante da Cidade. Família entre aspas, afinal, ela e eu ainda acertávamos nossas arestas, e Daniel era apenas uma criança muito apegada a mim. Férias entre aspas, pois tínhamos apenas este fim de semana de folga. Segunda, Sara deveria voltar para seu emprego na livraria.
                Surpresas viriam de todos os lados e eu não sabia.
                Do meu lado, pelo menos, ela estava guardada num bolso da mochila. Numa pequena caixa de veludo. E ali dentro, muito mais que aquele tradicional símbolo de fidelidade: ali estava meu amor, minha fé num futuro ao lado de alguém que eu parecia predestinado a encontrar.
                Saímos da rodovia principal e entramos por uma estreita estrada de chão. Quanto mais a frente caminhávamos na estrada, mais minhas memórias da infância afloravam: a poeira subindo enquanto as crianças corriam e se escondiam atrás das árvores, o cheiro do almoço da vizinha, a lama nas botas, um velho tocando violão sentado em sua cadeira de balanço. Mas eu mudei e as coisas por ali mudaram também. Enquanto minha barba ia crescendo, carros antigos tomaram o lugar das carroças. Todos os casebres, por mais simples que fossem, tinham uma TV. Alguns tinham até computador, internet. A maioria das crianças tinha um celular nas mãos. Era impressionante o quanto tudo tinha mudado em tão pouco tempo. Era impressionante o quanto eu tinha mudado nesse pouco tempo em que me mudei dali.
                O carro chacoalhava bastante ao passar pela estrada irregular e as pedras no meio do caminho. As pedras... Minha vida cheia de altos e baixos. A vida de qualquer um. A mão que afaga é a mesma que apunhala e tudo muda em um piscar de olhos... Balancei a cabeça para afastar os pensamentos estranhos e vi que tínhamos chegado.
                — É aqui.
                Descemos do carro. Meu avô nos esperava a porta, com um largo sorriso de quem não vê o neto há tempos. Nós nos abraçamos até perdermos a noção do tempo. Seu Tobias era um homem fantástico. Era como um segundo pai para mim. Se não fosse ele e minha avó, essa mudança radical nos últimos quatro anos não teria acontecido comigo. Hoje eu não seria um programador com aspirações à escrita. Eu não saberia viver sozinho.
                Ao ver Sara, no entanto, seu sorriso azedou. Foi como um flash, uma questão de segundos, o suficiente para eu perceber. Logo depois, num sorriso quase teatral, a cumprimentou. Sara, por outro lado, parecia mais natural, mas também nem tão confortável. Apresentei-os. Peguei Daniel no colo e o incluí nos cumprimentos. Meu avô nos convidou a entrar na casinha simples, porém entulhada de móveis que eu conhecia muito bem.
                A minha primeira reação foi perguntar por dona Inês, minha avó. A mulher mais generosa e a melhor cozinheira que eu já conheci na minha vida. Os olhos do meu avô marejaram ao tocar no nome dela. Me disse que ela estava piorando, e ele simplesmente não sabia o que fazer...
                Quando saí da fazenda, há quatro anos, minha avó tinha acabado de ser diagnosticada com Alzheimer. Lembro-me que na época, eu pensei: “Que estranho essa vida. Passamos anos tentando esquecer muitas coisas, e quando nosso corpo se encarrega de fazer isso por ele mesmo – esquecer tudo –  nós odiamos, queremos fugir. Não seria melhor começar tudo de novo? Viver cada dia como se o anterior não tivesse acontecido?”
                Alguns instantes depois, dona Inês irrompe pela porta que divide a sala da cozinha. Viu nós quatro sentados no sofá puído coberto com lençóis igualmente surrados e nos encarou por alguns instantes, como se analisasse a situação. Olhei fixamente para ele e foi aí que eu entendi: o terror não é para quem esquece. É para quem não é lembrado. A angústia de cada segundo que ela refletia fazia meu coração se chocar contra o meu peito de maneira tão forte que eu sentia que se ela demorasse mais alguns segundos o mundo ao meu redor se dissolveria. Sara e Daniel olhavam para ela, os dois confusos sem saber o que fazer. Monstro, alheio a tudo, dormia num canto da sala. Seu Tobias a encarava com seriedade. Será que ela iria se lembrar?
                — Ah, temos visita! — disse ela, por fim. Toda aquela tensão se transformara em sorrisos de alívio. — Por que não me falou, Tobias? Agora vou ter que colocar mais água no feijão! — sorriu, deu meia volta e adentrou a cozinha novamente.
                Toda aquela “conversa de adultos” estava aborrecendo o pobre Daniel, que estava com uma careta de tédio bem feia, sentado no colo de Sara. Fazia duas horas que havíamos chegado e ainda estávamos sentados no sofá. Resolvi leva-lo para brincar lá fora. O sol a pino e o céu sem nuvens eram super convidativos. Fui até meu antigo quarto (tomei cuidado para não olhar muito para as paredes, para não me perder num nevoeiro de nostalgia) e peguei uma bola de vôlei que meu pai me dera quando eu tinha uns seis anos de idade. Fomos para um grande terreno baldio que ficava em frente a casa, que as crianças chamavam de Caixa de Areia. Começamos a jogar a bola um para o outro. Estávamos nos divertindo. Era como se eu tivesse quatro anos, assim como ele. Era tão bom se sentir criança!
                Por falar em crianças, elas começaram a surgir de repente e  olhar nossa brincadeira. Acho que elas não estavam acostumadas a isso, coisa tão normal nos meus tempos de criança do campo. Duas, três, seis, doze crianças apareceram, querendo brincar com a gente. Daniel se enturmou em menos de cinco minutos. Ouço uma voz feminina dizer:
                — Vão começar a diversão sem mim?
                Sara sorriu e se juntou a nós. Dividimos as crianças em dois grupos e organizamos uma partida de Queimada. Ela, líder de um lado. Eu, líder do outro. A bola ia e voltava dos dois lados da Caixa com uma força e rapidez que deixaria qualquer garoto da Cidade tonto. As crianças se divertiam tanto! Era muito bom ver a alegria por debaixo dos cabelos desgrenhados, o rosto suado e as roupas sujas de areia. O time dela venceu duas partidas, o meu venceu três. Paramos para almoçar e depois retornamos para brincar com as crianças da rua, que eu descobri, conversando com meu avô, eram em sua maioria filhos dos meus colegas de infância.
                Decidi não esperar mais: pediria a mão de Sara naquela mesma noite. Talvez parecesse um pouco precipitado, mas não entendo dessas regras sociais. Não me importaria de quebrá-las.
                Entramos para casa quando as primeiras estrelas já despontavam no céu. Cansado, Daniel tomou um banho e foi direto para a cama. Sara foi logo depois. Já sentia o cheiro do jantar envolvendo toda a casa. Fui tomar banho logo após. Aquela torrente de água quente caindo sobre meu corpo me fez refletir sobre muitas coisas – quase como uma viagem ao meu interior. Esse sempre foi meu grande problema: no banho, eu me perdia no tempo. Não sei ao certo quantos minutos fiquei embaixo do chuveiro, mas quando saí, o clima estava diferente. Seu Tobias estava sentado numa das poltronas da sala, com o olhar perdido no nada. Fui até meu quarto e peguei a caixa de veludo. Procurei Sara em todos os quartos, na varanda, na cozinha, e até no banheiro de onde eu tinha acabado de sair. Ela não estava lá. Fui correndo a porta da frente. O carro dela também havia desaparecido.
                — Vô, onde está a Sara?
                — Foi... foi melhor assim. — disse ele, com a voz fria, tentando manter a calma diante de meu surto.
                — Por quê? O que houve, vô? O que você disse a ela? Por que ela foi embora? — indaguei, chegando ao fim das sentenças gritando tanto que senti minha garganta arder.
                É óbvio que tinha sido algo que ele disse. Não deveria ter deixado ela sozinha com meu avô depois daquele olhar na soleira da porta. O que será que eles tinham discutido? O que será que tinha acontecido?
                Dona Inês veio interferir. Olhou para mim e disse:

                — Marcelo, pare de gritar! Mário está dormindo que nem um anjinho no quarto. Ele é a sua cara...

8 de agosto de 2013

[502] Episódio Dois: CHEGANDO...



Quando o coração se aquieta,    
A alma tranquila se sente em paz.
Seus domínios voltam ao seu poder de ação,
Suas ações se tornam mais coerentes,
Terminam os transtornos mentais.
Inicia-se uma nova jornada.

Agora mais forte o espírito enfrenta,
O corpo aguenta,
A mente rapidamente se refaz.
E os tormentos deixam de ser dor,
Passam a novas aprendizagens
E os sonhos renascem.

Instalei-me em um albergue - triste, frio, sujo, sem identidade – logo que desembarquei aqui nessa cidade. Ali permaneci até encontrar um canto onde eu pudesse estar tranquila e sem medo...  Medo do perdido, da carência, do inesperado, do novo, do tudo.
Pássaros formam ninhos para aconchegar filhotes e protegê-los... Eu, em minha nova casa, busco uma referência física e emocional, vínculo indispensável a uma vida simples; quem sabe, entretanto, cheia de alegrias futuras. Sem traumas, sem exageros, sem lembranças nostálgicas nesse momento em que o importante é reaprender a ser.
Vida! Restaurá-la, traçar caminhos diversos, carregados de cotidiano, rotinas comuns, dessas que fazem a gente perceber que, por perto, está a felicidade, mas dela não nos damos conta por ser tão natural... Ela quando só se torna perceptível no instante vazio da perda, da ausência, da falta...
Dentre tantos desejos incrustados no coração, um particularmente arde, e com ele muito me importo: a procura de meu pai Daniel Posteur - ainda jovem jornalista, apaixonou-se por minha mãe e, por circunstâncias adversas às suas vontades se separaram.
Conheci o Edifício Cinza por intermédio de uma moradora, Mirella. Encontrei-a rapidamente em uma fila de metrô e, com esse meu jeito falante de puxar conversa, comentei sobre a minha urgência em encontrar um lugar pra morar.
Procurei o edifício, como me aconselhou a moça, mas, quando lá estive, não havia ninguém que pudesse me dar qualquer tipo de informação. Deixei um recado sob a caixa de correio. Um escrito, quase “crônico” – Crônico, genial! - Quem sabe Mirella ou outra pessoa qualquer o lesse e entrasse em contato.
Foi o que aconteceu. Recebi um e-mail: 
"Olá, Íris. Sou corretor de imóveis e encontrei seu recado à porta do Edifício Cinza. Fico feliz em lhe dizer que temos um apartamento vago no 5º andar, o 502. O espaço é pequeno, mas bem distribuído em quarto, sala, cozinha, banheiro e uma pequena área. Caso ainda tenha o interesse, envie-me uma resposta." 
Sobressaltada, tomada por uma alegria que há muito não sentia, soube de imediato: aquele seria meu canto, meu recanto recôndito, esconderijo do vento inesperado, das tempestades assombrosas e malqueridas... Meu ninho, meu aconchego cinza em paredes esburacadas, chão sofrido, mas nada que uma boa limpeza e ligeira pintura não resolvam.
E cá estou...

Agora com endereço certo posso receber cartas e amigos. Cartas sim! Amo as palavras escritas, marcadas em versos ou em prosas, mas com identidade própria, registros que serão guardados e poderão ser lidas e relidas... Papéis e palavras, grandes companheiros meus.


Sobrevivo à ideia de ter-me como companhia e a companhia dos meus sonhos - dos mais inocentes aos mais profanos. Sonhos que permeiam vidas pretéritas e as de agora. Sonhos que me embalam e me assustam. Sonhos que me impulsionam ou me deixam em apatia extrema... 
Mas sonhos, sempre sonhos!

6 de agosto de 2013

[502] Episódio Piloto: Sou Íris, apenas Íris.


ÍRIS

Eu, Íris Sinah, não tenho família nem amigos aqui. Passei em um concurso público e vim lecionar literatura para o ensino médio em uma escola estadual. Descendente de ciganos, meus bisavós viveram muito tempo da Índia, terra dos meus tataravós. Nômades, sem rumo certo, outras gerações chegaram à Polônia e terminaram na Alemanha. Terminaram mesmo, porque a maior parte da minha gente morreu na guerra, nas câmeras de gás nazistas.
Shakira Sinah, ainda bebê, fora entregue a uma senhorinha judia no momento de seu embarque clandestino para Portugal. Shak, como era chamada carinhosamente por todos, minha mãe. Morreu faz dois anos e, ainda em seu leito no hospital, contava às enfermeiras e aos médicos sua vida com Eloah kraiser, minha avó, quem a adotou e a criou como filha querida.


Falo com o meu silêncio rouco o que os meus olhos e o meu sorriso não conseguem exprimir.
Faltam-me, mais uma vez, as palavras - companheiras de alegrias loucas e mentiras tolas, em imagens transcendentes que brilham no escuro do quarto, quando a insônia teima em não me deixar dormir.
Cresce-me a alma, enquanto o surdo momento, pouco, se mantém constante dentro de mim; uma ausência que me faz embebedar-me de sonhos, entorpecer-me de lembranças mortas decompostas em fatos e fotos daquele álbum velho esquecido na estante do quarto de vestir.
Surge, assim, a vontade louca de gritar a vida... Toda vida que me resta... Desvendar o segredo, caro, raro, de saber desejar-me inteira para entregar-me ao prazer de ser e encontrar a paz nos fatos e nas fotos que estão por vir.

[304] episódio piloto


Ainda me lembro de quando eu a conheci. Mesmo no meio daquela fumaça de cigarro que cobria toda a kitchenette do Sujeira, assim que ela chegou perto de mim, sentado no sofá floral da sala conjugada a cozinha, o cheiro forte e doce de chiclete de melancia incomodou meu nariz. Ela era a coisa mais linda que já tinha visto.

Vestida de branco com um raio no rosto, referência a David Bowie, segurava uma garrafa de cerveja e se sentou ao meu lado, sem se importar com a garota fantasiada de Princesa Leia que já estava comigo. A conversa começou a fluir entre nós dois (eu e ela), deixando a minha-primeira-mina-da-festa com a cara vermelha de raiva. Naquela mesma hora, soube que ela seria minha. Imponente, descarada, safada. Aquela puta!

Conversamos sobre bebidas, festas, pessoas, Ramones, tatuagens, frescobol, comidas, cafés, música. Trocamos telefones. Discutimos Foucault. Transamos. Duas Vezes. Nesta mesma noite. Estava no apartamento dela quando acordei. Mas ela não estava mais na cama. Nem em nenhum lugar entre aquelas paredes. Havia deixado somente um bilhete dizendo que deixou uma garrafa com café na pia. Vesti novamente minha roupa de Doctor Who, desta vez sem o sobretudo (este foi o principal motivo da minha escolha de fantasia pra festa: será que posso andar com ela à luz do dia?) e voltei pra minha casa, com uma leve, bem leve dor de cabeça.

Desenho. Adoro desenhar. Também sou (ou tento ser) escritor e tento há vários anos terminar os livros que comecei. Só consigo terminar moleskines que encho de rabiscos, desenhos, frases que vejo por aí... Estava escrevendo numa cafeteria (o lugar recomendado para escrever de 9 entre 10 escritores) quando ela me ligou pela primeira vez. Já haviam se passado dois meses, mas consegui reconhecer a voz dela. Marcamos um encontro ali mesmo e, dez minutos depois, ela estava li, na minha frente,chorando enquanto dizia que estava grávida. De mim.


Sou de família extremamente católica, apesar de eu participar somente das missas de Páscoa e Natal. Quando ficaram sabendo que eu a engravidei, meus pais disseram que eu só iria para o céu se assumisse o moleque. Duas semanas depois já estávamos fazendo exames juntos, como um casal empolgado com o primeiro filho, mas sem a parte da empolgação. Logo mais, juntos num apartamento grande e confortável. Um quarto pra nós dois. Um quarto pra criança. Um quarto de visitas, que ela disse ser necessário, já que a família dela morava no interior.

Todo casal começa a morar feliz e, à medida que o tempo passa, os defeitos e discussões sobre eles vão aparecendo. Parece que começamos nosso relacionamento pelo final. Não parecia haver qualidades em nenhum de nós dois. Brigávamos todos os dias. E não, não fazíamos as pazes na cama. Às vezes, somente com um selinho de manhã. Só por uma vez dei uma rosa a ela, mas não houve reconhecimento, então não repeti o ato.

Tudo piorou quando ela perdeu a criança. Foi tudo muito mal explicado, mas ela disse que caiu da escada quando tirava a poeira de cima do armário da área de serviço. Por dois dias nem conversamos. Depois, tivemos a pior de todas as brigas. E mais uma vez acordei sem ela. Novamente, o bilhete estava lá.

Deixei bife e arroz no microondas. Joguei na privada aquela rosa. E a aliança eu deixei pra você pagar as contas.

Aquela puta! Me deixou sozinho ali, com o Sabujo, o cachorro dela. Não era possível. Não podia ser verdade! Por dois dias eu esperei ela voltar. Só no terceiro dia, o dia da Ressurreição, me toquei. Fui à Missa de Páscoa. No outro dia, vendi as alianças. Paguei as contas. Sentado numa desconfortável cadeira de madeira, na casa dos meus pais, visualizei a grande oportunidade da minha vida. Um curso de ilustração na Inglaterra. 

Foi esse curso que deu o nome de Londres ao apartamento onde estou morando hoje. Ainda no aeroporto, depois da grande chance ter ido pros ares, comprei um jornal. E ali estava, nos Classificados, um apartamento vago, perfeito pra um cara que precisa aprender a lidar com a solidão e um cachorro abandonado pela dona, num edifício cinza no centro da cidade.

FOTOS: (1) (2)