“Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!”
Edgar Allan Poe, O Corvo.
trad. Fernando Pessoa - 1924
Suas
únicas malas eram: os livros, algumas peças de roupas e seu gato preto, Edgar.
Havia também a constante tristeza entranhada em seu ser, mas isso ela tentou
deixar para trás, o problema é que ela não tinha querer.
Diante do prédio acinzentado onde seria
sua nova moradia, fez uma prece para conseguir continuar sua vida de maneira
tranquila, depois de tudo que lhe havia acontecido. Antes de entrar e seguir
até seu apartamento, uma memória antiga lhe invadiu e a fez ficar estática por
alguns estantes, pois havia lembrado que num edifício não muito diferente desse, havia sido uma pessoa muito feliz, junto do seu ex-marido, até acontecer o que
aconteceu. Afastando-a do breve momento de nostalgia, Edgar soltou um miado
meio desesperado.
-
Eu sei Edgar. Você está com fome, vamos entrar e conhecer nosso novo lar.
Seguindo pelo corredor em busca do
número 305, Catarina ia toda torta segurando a bolsa com as roupas e uma caixa
bastante pesada com seus livros. O gato a acompanhava calmamente.
-
Pronto, chegamos! - arriscou ela uma voz cantante de falsa alegria, que Edgar
ignorou e a ultrapassou para entrar no apê.
Assim que abriu a porta Catarina ficou
encantada com a decoração do antigo inquilino: uma parede da sala estava
pintada de preto com um enorme quadro do Magritte, coincidentemente, a mesma
tatuagem que ela possuía nas costas. A sala também estava cheia de estantes que
ocupavam quase todo o ambiente. A cozinha era linda e retrô, com enfeites delicados
e móveis arcaicos. Andava e verificava cada canto do apartamento, quando
encontrou seu acalento: uma garrafa de uísque. Esse morador ia com a minha cara, ainda bem que ele não me conheceu,
pois era capaz de tudo sair errado – ela pensou, um pouco desconfiada, e
andou a caminho do banheiro.
Posso ver
através do reflexo do espelho um corpo, um corpo com olhos profundos, porém
quase adormecidos. Contemplo uma face rosada com uma boca pequena, de lábios
finos e, logo acima, um nariz feio e arredondado, como de um palhaço – ou seria
de uma louca? Os cabelos são compridos e castanhos, um pouco mais escuros do
que os olhos. O corpo. O corpo está protegido por uma pele macia e morena bem clara,
quase rósea, que tem ombros largos e caídos – uma expressão de completo
fracasso, sem vida... os seios são pequenos e pontudos, a barriga com uma
elevação desproporcional, mas com uma cintura ainda muito fina, descendo a
região sagrada de um corpo, o órgão da vida, rosado e com pelos, aguardando o
líquido necessário para plena felicidade clandestina, roubada por alguns
minutos. Através dos olhos, que são o espelho da alma, reflete uma grande
angústia, uma dúvida e uma insatisfação crônica – de ser ou não.
O barulho dos livros despencando no chão
acordou Catarina de mais um devaneio e, apesar da nova moradia e de novos ares, os fantasmas do passado iam assombrar Catarina onde ela estivesse. Foi até a
sala investigar o que estava acontecendo e viu Edgar tentando encontrar um
lugar aconchegante dentro da caixa na qual estavam os livros, agora no chão.
Depois do dia longo de arrumação, ela e o
gato deitaram-se no tapete felpudo que o antigo morador deixara (esse antigo
morador era mesmo uma pessoa muito gentil!) e dormiram imediatamente. Catarina
passou a noite tendo pesadelos, e o pior deles foi o seguinte:
Dentro de um pequeno quarto imundo, estava ela e um homem
deitado, totalmente despido. No chão, ela se retorcia de dor, alisando a pequena
barriga que mostrava uma elevação, e, por dentro, um feto pequenino. Espalhado
pelo chão, havia caixas de remédios abortivos, da qual ela havia engolido todos os
comprimidos atrás de um resultado eficaz – expelir o feto. Matá-lo.
Durante alguns minutos ela parara de se torcer, parecia
morta. O homem caminhou até ela e começou a esmurrar o seu ventre. Ainda
deitada no chão, o sangue começou a derramar-se por entre suas pernas, que agora estavam
banhadas de uma vermelhidão imunda. Com pouca força, ela foi tentando
levantar-se, ficando de quatro e, depois, se apoiando somente nas pernas.
Caminhou até escorar numa parede e, novamente, o homem a seguiu e começou a
esmurrá-la na barriga. Por um instante ele parou, respirando com pesar, mas
depois apanhou uma faca que estava entre suas roupas e desferiu golpes
novamente contra o ventre de Catarina. Caíra no chão novamente, mais sangue escorria
pela sua vagina, ela forçava um parto prematuro com as poucas forças que tinha.
Empurrava com força o ser para fora de si, sentiu que saia, escorou-se numa
parede quase sentada quase deitada e com uma das mãos tentou puxar o feto para
fora. Percebera resquícios de algo na sua mão e vira que arrancara algo que
seria o braço. Desesperada, pôs-se a colocar mais força. O feto nascera,
despedaçado.
No chão, caiu um ser que não era. A criaturinha, com pouco
mais de doze centímetros, estava no chão totalmente coberto por uma gosma
nojenta. Ela contemplava o feto com olhos mergulhados em águas salgadas, quase
a escorrer pela sua face, e o apanhou nos braços e o aninhou junto ao seu
colo. O corpo minúsculo, quebrável por qualquer movimento por mais fraco que
fosse, não tinha vida, mesmo assim ela roçava o bico do seio próximo do que
seria a boca da criança, caso ela tivesse permitido que se formasse. As
miniaturas que imitavam projetos de braços, pernas e mãos, eram acariciadas por
ela numa espécie de esperança de trazê-lo de volta. As águas agora corriam pela
sua face lavando seu rosto da imundície aparente. Ela soltou o feto no chão com
calma, como se tivesse terminado de niná-lo e um movimento mais rude pudesse
acordá-lo. Deitou-se do lado dele e assumiu a mesma posição fetal, encolheu-se
toda em torno de si, tremia muito e não conseguia parar de chorar. Estendeu sua
mão sobre o feto o arrastou para mais próximo de si, abraçou e desejou morrer
no lugar dele, tarde demais. Não havia nada que fizesse para mudar o que tinha
acontecido, sentia-se muito mal, estava cheia de dor e sentia também muita
náusea. Um desejo imenso de voltar atrás tomou conta dela que a fez
selvagemente tentar enfiar o feto de volta ao seu ventre, o corpo todo se
desmanchando com a força que ela o pressionava contra a vagina.
Do canto do quarto, o homem contemplava tudo como se fosse uma
peça teatral, observava com exagerada atenção e mal piscava os olhos. No outro canto
com os braços entrelaçados nas pernas balançando suavemente, estava Catarina, o
sangue escorrendo sem parar, completamente calma, já quase adormecendo ou
morrendo; a dor não a surpreendia mais.
De
súbito ela acordou toda suada, completamente nua, com todas as cicatrizes em
seu ventre amostra.
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