27 de fevereiro de 2013

[201] Segundo Episódio: A ti mesmo


rei Otávio, o novo pároco.
 - Frei? Mas por que frei? O senhor não é padre?
 - Sim, sou padre. Mas, diferente do pároco anterior, eu pertenço a uma ordem religiosa, é por isso que nos tratamos como freis. Eu sou um irmão religioso que também é padre. Entendido?
          - Mas tão novo o senhor, não? É até estranho chamar de senhor.
          - Levo como um elogio, mas garanto que dentro desse corpo mora um padre bem velhinho, daqueles que estamos mais acostumados a ver por aí.

          Esse tem sido o meu início padrão de diálogos por esses últimos dias, em que de meia em meia hora aparece alguém a quem devo me apresentar. Meu tempo tem se dividido entre estas conversas banais, celebrar as missas diárias e inteirar-me a respeito de como funciona em termos administrativos esta paróquia, tarefa que tem se apresentado de modo incrivelmente simples.

          O pároco anterior – com o qual, infelizmente, não pude travar contato direto em função de sua saída às pressas – deixara tudo previamente muito organizado. Chego a desconfiar de que fora advertido de que um padre inexperiente iria assumir o seu lugar. Tendo tal aviso acontecido de fato, das duas uma: ou inflou-se de amor fraterno pelo seu sucessor, a ponto de dedicar alguns dias produzindo orientações e organizando alguns relatórios que me foram cuidadosamente entregues; ou foi tomado por um sentimento de posse e de ciúmes, muito comum nesses sacerdotes que passam uns tantos anos sob a mesma função no mesmo lugar, e tratou de deixar ordens expressas para que eu não fosse inventar moda e desorganizar seu rebanho já tão bem acostumado aos seus modos de proceder.

          Na sacristia, encontrei um gigantesco quadro organizacional que continha o calendário litúrgico inteiro. Não sei se minha expressão ao contemplar esse signo de exagero administrativo foi de um leve espanto ou de desdém. Por sorte, aquela senhora que me acolheu no dia de minha chegada estava ao meu lado. Pareceu até ter duvidado de minha capacidade em lidar com o sistematicismo de seu antigo pastor, tratando logo de começar a explicar:

          - Nossa antigo pároco era muito organizado, Frei Otávio – disse em tom solene, como se estivesse falando de um morto – e deixava tudo planejado. O senhor pode observar que as equipes de liturgia já estão montadas para as celebrações de muitos meses adiante. O senhor tem mais experiência do que eu, sabe como é difícil contar com o compromisso das pessoas hoje em dia, né? Principalmente os músicos; é um tal de não poder vir, de ter outros compromissos e por aí vai o festival de desculpas.

          - Claro, claro, dona Vilma. É bom que tenhamos um bom planejamento, só espero que o Senhor encontre um espacinho nos nossos diagramas para inspirar algumas ações não planejadas – respondi em um tom levemente provocativo àquela zelosa paroquiana que não pôde esconder sua cara de desconcerto antes de alguns segundos.

          Mas sobre o que eu estava falando antes, da explicação repetida em minhas apresentações: até me teriam enchido a paciência se não fossem tão diretamente ligadas aos motivos de eu ter vindo parar aqui.

          A vida em comunidade, nos termos em que era vivida em minha ordem, gerou um constante esplim em meu espírito. Talvez Sartre se remexa em seu túmulo por fazer menção tão clichê aos seus escritos, mas o inferno (ou boa parte dele) reside no outro. Resguardados os devidos limites, há caminhantes que encontram na solidão do caminho energia necessária para os próximos passos. Se sou assim, ainda não posso responder. Lanço-me no mistério, coisa que um padre não vê como desafio. Sei que ignoro deliberadamente o legado comunitário do Santo Pai Agostinho, mas um de seus conselhos mais ardentes ecoa de forma tão vibrante em minha cabeça que não posso evitar ser consumido por ele: conhece-te a ti mesmo. 

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