14 de fevereiro de 2013

[204] Episódio 3: Terça-feira Gorda



- Desde sexta o cenário não muda: uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
 - Mas não tá ventando.
- Não estrague o meu barato. Eu levei tempo para encontrar padrões entre essa gente aí embaixo e as ondulações de campos de trigo.
 - Quê?
  - Você sabe, o efeito visual que o vento exerce sobre a imensidão dourada. Pegue o leite na geladeira.
 - Cê está fazendo de novo.
 - O quê?
- Sendo cafona. “Imensidão dourada” é o tipo de coisa que minha professora de português diria. Ela tem uns 300 anos e um bigode maior que o seu. E onde é que você já viu plantação de trigo?
 - Ao vivo eu não vi em lugar nenhum, mas isso não faz a menor diferença. Na verdade eu tinha em mente as descrições dos trigais de Arles que Vincent fazia para o Theo.
 - Van Gogh?
 - Sim senhora. E isso significa que você estava ouvindo. Você não estava dormindo de verdade naquele dia em que assistimos o Kurosawa.
 - Claro que estava, filme chato pra burro. E que mania irritante essa de você achar que eu aprendo tudo com você. Agora não posso mais nem saber quem é Van Gogh?
 - Olha, você tem que reconhecer que eu me esforço para colocar um pouco de cultura nessa sua cabecinha dura, mesmo que nem sempre tenho êxito. Vou precisar de 4 ovos.
- Em compensação você nunca viu um campo de trigo na vida e acha que pode tirar uma com a minha cara.
 - Que os deuses que regulam os hormônios de todas as criaturas vivas me protejam da arrogância pré-adolescente! Eu não preciso partir numa expedição para o Trigal Desconhecido para criar uma metáfora. Além disso, plantações de trigo não são peixes abissais: não precisam ser mostradas em documentários da Discovery porque fazem parte do imaginário popular.
 - Mas não fazem mesmo. Tenho certeza de que só você fica pensando nessas coisas. Tô perdendo meu tempo: eu podia estar assistindo a final de America’s Next Top Model em vez de estar tendo essa conversa sobre trigo.
- Se te consola o episódio que você está perdendo não tem nada de mais. Aquela ruivinha que você gostava não tinha a menor chance – só chegou tão longe porque tinha uma história triste de família pra contar.
 - CARA, VOCÊ ACABOU COM A GRAÇA. POR QUE SEMPRE FAZ QUESTÃO DE CONTAR TODOS OS SPOILERS?
- A vitória da assimétrica do Kentucky não é um spoiler. Ou melhor, até chegou a ser um spoiler há mais de um ano, já que você estava acompanhando uma reprise.
 - E DAÍ?
 - E daí que spoilers têm data de validade. Porque estou sendo benevolente, posso conceder que um spoiler pode ser chamado dessa forma até, digamos, 15 dias após a exibição do programa ou filme em questão.
 - E depois?
 - Depois o problema é todo seu por ser lerda.
 - PUTA MERDA.
- Não sou sua mãe para controlar sua boca, mas, por favor, não deixe que ela pense que você está aprendendo a falar assim comigo. Não é como se ela pudesse arranjar espaço na agenda para aumentar a carga horária de sermões que ela faz.
- Você consegue ser bem mais chato que a minha mãe quando quer, sabia? Não sei por que eu ainda venho te visitar.
- Porque não há outra pessoa no mundo que cozinhe pra você no Dia da Panqueca.
 - Tá certo. O dia da panqueca é a melhor de todas as suas maluquices.
 - Vou ignorar o tom reprobatório para corrigir sua ignorância: o Dia da Panqueca é verdadeiramente uma instituição em alguns países de língua inglesa, principalmente na Inglaterra. Como você sabe ou deveria saber, o último dia de carnaval é chamado de Terça-feira Gorda, já que a Quarta-Feira de Cinzas marca o início da Quaresma, um período que para os cristãos significa ou deveria significar 40 dias de privações, penitências, jejum e purificação para a Páscoa. A panqueca entra nessa história porque é feita com açúcar, gordura e ovos: essencialmente bombas calóricas cujo consumo deveria evitado durante o período.
 - Às vezes acho que meu pai está certo e que você realmente engoliu a Wikipedia.
- Sinto muito mas “seu pai” e “certo” são duas coisas que não cabem na mesma frase sem que o universo entre em colapso. Ele jamais saberia a diferença entre a pesquisa apaixonada e o ritual bárbaro de cortar e colar da Wikipedia que se pratica por aí. Mas, de todo jeito, aprendi sobre o calendário religioso quando tinha mais ou menos a sua idade e minha mãe me obrigou a fazer catequese.
- Também aprendeu sobre panquecas na igreja?
- Quem me dera. Quem me contou sobre a parte das panquecas foi uma amiga da faculdade que gostava muito de cozinhar. Essa receita é dela, inclusive. Mais uma xícara de trigo, por favor.
 - Aí, você tinha mesmo que se mudar para o centro da cidade? Não vou conseguir dormir com essa gente cantando no meu ouvido. Posso raspar a vasilha?
 - Se você lavar a colher antes de colocar na massa pode. É o que eu estou tentando dizer esse tempo todo, Vivi. Desde sexta o cenário não muda: uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
 - Já disse que não tá ventando.
 - Sério que você quer começar tudo de novo?
- Minha mãe disse que puxei a você na facilidade para irritá-la.
 - Você até tem algum talento, mas vai ter que comer muita panqueca pra me alcançar. Quer assistir o quê  enquanto almoçamos?
- Qualquer coisa que não seja um filme do Kurosawa.
- Se você não gosta do meu jeito de passar o carnaval ano que vem podemos fazer diferente: podemos fundar o “Grêmio Recreativo Imensidão Dourada”. Imagina só! Posso pedir para a sua professora de português criar uma marchinha, saímos nesse sol para competir com o bloco lá embaixo e nos misturamos à plantação de cabeças que se agitam sem vento, como você faz questão de assinalar.
- Não abusa da sorte, tio Jorge, e me passa o leite condensado.
- Tudo bem, madame, a senhora é quem manda.


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