- Desde sexta o cenário não muda:
uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
- Mas não tá ventando.
- Não estrague o meu barato. Eu levei
tempo para encontrar padrões entre essa gente aí embaixo e as ondulações de campos
de trigo.
- Quê?
- Você
sabe, o efeito visual que o vento exerce sobre a imensidão dourada. Pegue o
leite na geladeira.
- Cê está fazendo de novo.
- O quê?
- Sendo cafona. “Imensidão
dourada” é o tipo de coisa que minha professora de português diria. Ela tem uns
300 anos e um bigode maior que o seu. E onde é que você já viu plantação de
trigo?
- Ao vivo eu não vi em lugar nenhum, mas isso
não faz a menor diferença. Na verdade eu tinha em mente as descrições dos trigais de
Arles que Vincent fazia para o Theo.
- Van Gogh?
- Sim senhora. E isso significa que você estava
ouvindo. Você não estava dormindo de verdade naquele dia em que assistimos o Kurosawa.
- Claro que estava, filme chato pra burro. E
que mania irritante essa de você achar que eu aprendo tudo com você. Agora não
posso mais nem saber quem é Van Gogh?
- Olha, você tem que reconhecer que eu me
esforço para colocar um pouco de cultura nessa sua cabecinha dura, mesmo que
nem sempre tenho êxito. Vou precisar de 4 ovos.
- Em compensação você nunca viu
um campo de trigo na vida e acha que pode tirar uma com a minha cara.
- Que os deuses que regulam os hormônios de
todas as criaturas vivas me protejam da arrogância pré-adolescente! Eu não
preciso partir numa expedição para o Trigal Desconhecido para criar uma
metáfora. Além disso, plantações de trigo não são peixes abissais: não precisam
ser mostradas em documentários da Discovery porque fazem parte do imaginário
popular.
- Mas não fazem mesmo. Tenho certeza de que só
você fica pensando nessas coisas. Tô perdendo meu tempo: eu podia estar assistindo a final de America’s Next Top Model em vez de estar tendo essa conversa sobre trigo.
- Se te consola o episódio que
você está perdendo não tem nada de mais. Aquela ruivinha que você gostava não
tinha a menor chance – só chegou tão longe porque tinha uma história triste de
família pra contar.
- CARA, VOCÊ ACABOU COM A GRAÇA. POR QUE
SEMPRE FAZ QUESTÃO DE CONTAR TODOS OS SPOILERS?
- A vitória da assimétrica do
Kentucky não é um spoiler. Ou melhor,
até chegou a ser um spoiler há mais
de um ano, já que você estava acompanhando uma reprise.
- E DAÍ?
- E daí que spoilers têm data de validade. Porque estou sendo benevolente,
posso conceder que um spoiler pode
ser chamado dessa forma até, digamos, 15 dias após a exibição do programa ou filme
em questão.
- E depois?
- Depois o problema é todo seu por ser lerda.
- PUTA MERDA.
- Não sou sua mãe para controlar
sua boca, mas, por favor, não deixe que ela pense que você está aprendendo a
falar assim comigo. Não é como se ela pudesse arranjar espaço na agenda para aumentar
a carga horária de sermões que ela faz.
- Você consegue ser bem mais
chato que a minha mãe quando quer, sabia? Não sei por que eu ainda venho te
visitar.
- Porque não há outra pessoa no
mundo que cozinhe pra você no Dia da Panqueca.
- Tá certo. O dia da panqueca é a melhor de
todas as suas maluquices.
- Vou ignorar o tom reprobatório para corrigir
sua ignorância: o Dia da Panqueca é verdadeiramente uma instituição em alguns
países de língua inglesa, principalmente na Inglaterra. Como você sabe ou
deveria saber, o último dia de carnaval é chamado de Terça-feira Gorda, já que
a Quarta-Feira de Cinzas marca o início da Quaresma, um período que para os cristãos
significa ou deveria significar 40 dias de privações, penitências, jejum e
purificação para a Páscoa. A panqueca entra nessa história porque é feita com
açúcar, gordura e ovos: essencialmente bombas calóricas cujo consumo deveria
evitado durante o período.
- Às vezes acho que meu pai está certo e que
você realmente engoliu a Wikipedia.
- Sinto muito mas “seu pai” e “certo”
são duas coisas que não cabem na mesma frase sem que o universo entre em
colapso. Ele jamais saberia a diferença entre a pesquisa apaixonada e o ritual
bárbaro de cortar e colar da Wikipedia que se pratica por aí. Mas, de todo
jeito, aprendi sobre o calendário religioso quando tinha mais ou menos a sua
idade e minha mãe me obrigou a fazer catequese.
- Também aprendeu sobre panquecas
na igreja?
- Quem me dera. Quem me contou sobre
a parte das panquecas foi uma amiga da faculdade que gostava muito de cozinhar.
Essa receita é dela, inclusive. Mais uma xícara de trigo, por favor.
- Aí, você tinha mesmo que se mudar para o
centro da cidade? Não vou conseguir dormir com essa gente cantando no meu
ouvido. Posso raspar a vasilha?
- Se você lavar a colher antes de colocar na
massa pode. É o que eu estou tentando dizer esse tempo todo, Vivi. Desde sexta
o cenário não muda: uma plantação de cabeças agitadas pelo vento.
- Já disse que não tá ventando.
- Sério que você quer começar tudo de novo?
- Minha mãe disse que puxei a
você na facilidade para irritá-la.
- Você até tem algum talento, mas vai ter que
comer muita panqueca pra me alcançar. Quer assistir o quê enquanto
almoçamos?
- Qualquer coisa que não seja um
filme do Kurosawa.
- Se você não gosta do meu jeito
de passar o carnaval ano que vem podemos fazer diferente: podemos fundar o “Grêmio
Recreativo Imensidão Dourada”. Imagina só! Posso pedir para a sua professora de português criar
uma marchinha, saímos nesse sol para competir com o bloco lá embaixo e nos
misturamos à plantação de cabeças que se agitam sem vento, como você faz questão
de assinalar.
- Não abusa da sorte, tio Jorge, e me passa o leite condensado.
- Não abusa da sorte, tio Jorge, e me passa o leite condensado.
- Tudo bem, madame, a senhora é quem manda.
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