Há
anos, raiou no céu uma nova estrela. Não, essa não se chamava Aurélia Camargo:
era um corpo celeste mesmo. Lêda sabia bem disso porque um de seus velhos
passatempos nas noites insones era sentar no seu pátio e admirar o céu. Essa
estrela não existia antigamente. Ela tinha certeza. Essa estrela era descoberta
sua.
Nos
primeiros anos vivendo ali, a tarefa de observar o céu era um pouco mais fácil.
A não existência dos edifícios ao redor facilitava a visão. Depois,
instalara-se o que Lêda chamava de “pequeno cortiço”. Os edifícios se juntaram
a ponto de, no inverno, o sol não bater no interior do apartamento em nenhum
momento do dia.
Lêda
havia acordado às 4h, sem querer. Tomou água e tentou dormir novamente. Não
conseguiu. Resolveu sair para o pátio e aproveitar o resto da noite que ainda
tinha admirando sua estrela junto às de Galileu. A despeito do verão, soprava
um vento frio na madrugada e decidiu, então, pegar um agasalho e sentar-se na
pequena área coberta que havia aos fundos. Tinha uma visão do céu, não grande,
mas o suficiente para ela. Via, também, suas plantas e algumas janelas do
edifício ao lado. Em uma delas, a luz estava acesa. O vidro jateado fechado
fazia com que fosse possível observar apenas um vulto no interior do
apartamento. Esse vê-não-vê causou uma profunda curiosidade que a fez
momentaneamente esquecer sua estrela.
Ali
era a janela da área de serviço. Por detrás do embaçado, via o perfil do que
achava ser uma mulher. Logo a janela se abriu. Lêda teve o ímpeto de se
levantar dali e sair para não ser vista, mas percebeu que estava no escuro e
que seria muito difícil enxergá-la. Decidiu ficar quieta para não ser
percebida. E o que viu a perturbou.
A
mulher, agora vista de maneira clara com a janela aberta, segurava um cigarro
aceso entre seus dedos que esquecia de fumar. Era nítida sua expressão de
abatimento, mesmo de longe e apesar de Lêda ter demorado a perceber. Como
alguém de luto, parecia ter olheiras de quem não dormia há dias e começou a
chorar sem escândalo, mas com profunda tristeza. A senhora sentada agradeceu
mentalmente a luz forte do apartamento que iluminava a mulher e o fato de nunca
ter necessitado usar óculos, o que se confirmava a cada visita anual ao
oftalmologista.
O
cigarro acabava praticamente sozinho quando aparece atrás outra mulher,
aproximadamente da mesma idade. Ao contrário da primeira, aparentava satisfação
no semblante. As duas trocam algumas palavras. Agora, Lêda já não agradece:
apesar da noite silenciosa, a idade não permitiu que entendesse nenhuma palavra
dita por elas, mesmo com o tom se intensificando. Não havia dúvidas que aquilo
era uma discussão.
Um desconforto começou a se instalar nela, mas não em maior
intensidade do que a curiosidade. Por que discutiam? Quem eram essas mulheres?
Em todos esses anos, nunca havia passado por uma experiência dessas. Poderia
ser banal, mas não para uma senhora que vivia sozinha, enclausurada em seu
apartamento, entre móveis antigos, paredes coloridas e suas plantas. Nem
porta-retratos davam a sensação de algo vivo naquele lugar. Já havia, há
tempos, tirado todos do apartamento para não ver o rosto de quem não a vê
pessoalmente.
A
discussão estava no que parecia seu auge quando a mulher feliz, permanecendo
feliz, arrastou a mulher triste, que permanecia triste, para dentro do apartamento
e rapidamente fechou a janela. Os vultos se afastaram do vidro. Não havia mais
pessoas, cigarro, fumaça, choro nem murmúrios incompreendidos. Havia,
novamente, o silêncio da noite e a estrela de Lêda. Mas isso já não interessava
mais.
Lêda
morava sozinha dentro das paredes maciças do seu apartamento. Mas não saía de
sua cabeça que todos estavam ali tão próximos, embora apartados. Percebeu que
era só pensar na etimologia da palavra: apartamento, apartar. Mas, graças!,
haviam as janelas. E, para Lêda, havia agora uma distração.
..."a mulher feliz, permanecendo feliz, arrastou a mulher triste, que permanecia triste"... Beleza na construção da palavra. :) Muito legal!
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