13 de fevereiro de 2013

[201] Episódio Piloto: Cinza - Uma Nova Liturgia


areço encarnar um senhor ao admitir, mas parece que tudo o que nós conquistamos no fluxo de nossa vida é mesmo aquela lanterna na popa, capaz tão somente de iluminar as ondas que deixamos para trás*. Pode ser que alguém de mais idade e consequentemente sem grandes expectativas para o futuro em vida contente-se com tal entendimento; quanto a mim, as ondas formadas no decorrer de vinte e cinco anos ainda não parecem compor uma unidade interpretativa de valor satisfatório. Perturba-me o futuro. Quisera eu apegar-me ao passado e ao seu significado a posteriori diante da certeza estéril que meus dias estão se acabando!

          Acredito, porém, estar realmente me antecipando em sentir tais coisas, tipicamente reservadas a outras épocas da vida. Um dos perigos da busca pela transcendência cristã é esquecer-se da ordem da vida terrena. E nós, cuja tarefa é demonstrar mais incisivamente uma possibilidade de harmonia entre as duas dimensões da vida, criamos frequentemente estilos de vida quiméricos; em menos palavras: ligamo-nos mais ao inferno do que à recompensa atemporal do paraíso. Como disse o rabugento sacerdote com uma voz embriagada de tédio em uma das minhas confissões juvenis, o tapete do inferno é feito de padres. Ainda me questiono se foi uma lamentação indevidamente verbalizada ou uma tentativa de assustar-me.

          E é envolto nestes pensamentos que desfruto das primeiras horas de solidão em meu apartamento. Há pouco uma senhora testava a minha paciência pensando provavelmente estar dando-me a atenção merecida por um pároco recém chegado à Cidade. Uma daquelas senhoras que estão espalhadas em tantas paróquias por aí: quarentona, friamente casada, sempre abusando dos detalhes dourados em suas roupas brancas (e não ouso questionar os motivos de um padrão tão curioso), troncuda e acumuladora de funções como coordenadora da catequese, da pastoral do batismo, da equipe de liturgia e – mesmo sem entender bulhufas de música – professora do coral infantil. Por trás de tão solícita recepção, há uma mensagem tão mais clara quanto intimidadora, que talvez possa ser expressa por “Prazer, padre. Nós somos seu rebanho e esperamos que cuide de nós, mas saiba que também estamos de olho em você”. Compreensível.

          Duas malas estufadas esperam por seu desmanche no quarto, sobre o lençol marrom de algodão bruto com que éramos obrigados a arrumar nossas camas ainda no seminário menor. Pela primeira vez, rezei as Vésperas em meu genuflexório privado, sem o coro da comunidade a entoar o hino e sem a luz vermelha do Sacrário a corar meu rosto. 

          A ausência dos violões dá lugar à sinfonia atonal que emana das pessoas, dos motores, dos apitares constantes, dos bueiros. Sons independentes na medida do possível, mas nunca desconexos. Um destino cada vez mais insondável me aguarda e na liturgia da vida moderna não há cerimoniário que nos possa indicar o que fazer. Sinto a estola – não mais verde, roxa, vermelha ou branca, mas cinza – pesar sobre meus ombros. Lembro inevitavelmente do caso do padre que foi encontrado enforcado em seus próprios paramentos.




* “A luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”. (Samuel T. Coleridge)

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