
areço encarnar um
senhor ao admitir, mas parece que tudo o que nós conquistamos no fluxo de nossa
vida é mesmo aquela lanterna na popa, capaz tão somente de iluminar as ondas
que deixamos para trás*.
Pode ser que alguém de mais idade e consequentemente sem grandes expectativas
para o futuro em vida contente-se com tal entendimento; quanto a mim, as ondas
formadas no decorrer de vinte e cinco anos ainda não parecem compor uma unidade
interpretativa de valor satisfatório. Perturba-me o futuro. Quisera eu
apegar-me ao passado e ao seu significado a
posteriori diante da certeza estéril que meus dias estão se acabando!
Acredito, porém, estar realmente me antecipando em
sentir tais coisas, tipicamente reservadas a outras épocas da vida. Um dos
perigos da busca pela transcendência cristã é esquecer-se da ordem da vida
terrena. E nós, cuja tarefa é demonstrar mais incisivamente uma possibilidade
de harmonia entre as duas dimensões da vida, criamos frequentemente estilos de
vida quiméricos; em menos palavras: ligamo-nos mais ao inferno do que à
recompensa atemporal do paraíso. Como disse o rabugento sacerdote com uma voz
embriagada de tédio em uma das minhas confissões juvenis, o tapete do inferno é
feito de padres. Ainda me questiono se foi uma lamentação indevidamente
verbalizada ou uma tentativa de assustar-me.
E é envolto nestes pensamentos que desfruto das
primeiras horas de solidão em meu apartamento. Há pouco uma senhora testava a
minha paciência pensando provavelmente estar dando-me a atenção merecida por um
pároco recém chegado à Cidade. Uma daquelas senhoras que estão espalhadas em
tantas paróquias por aí: quarentona, friamente casada, sempre abusando dos
detalhes dourados em suas roupas brancas (e não ouso questionar os motivos de
um padrão tão curioso), troncuda e acumuladora de funções como coordenadora da
catequese, da pastoral do batismo, da equipe de liturgia e – mesmo sem entender
bulhufas de música – professora do coral infantil. Por trás de tão solícita
recepção, há uma mensagem tão mais clara quanto intimidadora, que talvez possa
ser expressa por “Prazer, padre. Nós somos seu rebanho e esperamos que cuide de
nós, mas saiba que também estamos de olho em você”. Compreensível.
Duas malas estufadas esperam por seu desmanche no
quarto, sobre o lençol marrom de algodão bruto com que éramos obrigados a
arrumar nossas camas ainda no seminário menor. Pela primeira vez, rezei as
Vésperas em meu genuflexório privado, sem o coro da comunidade a entoar o hino
e sem a luz vermelha do Sacrário a corar meu rosto.
A ausência dos violões dá lugar à sinfonia atonal que emana das pessoas, dos
motores, dos apitares constantes, dos bueiros. Sons independentes na medida do
possível, mas nunca desconexos. Um destino cada vez mais insondável me aguarda
e na liturgia da vida moderna não há cerimoniário que nos possa indicar o que
fazer. Sinto a estola – não mais verde, roxa, vermelha ou branca, mas cinza –
pesar sobre meus ombros. Lembro inevitavelmente do caso do padre que foi
encontrado enforcado em seus próprios paramentos.
* “A luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas
as ondas que deixamos para trás”. (Samuel T. Coleridge)
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