23 de janeiro de 2013

[407] Episódio 2: Sorvete de Morango


Eu tenho memória gustativa. Será que isso existe? Dizem que tem gente que memoriza determinadas situações através do cheiro. Sabe quando você entra num ônibus e, dentre tantas cabeças suadas, tem uma, apenas uma, lavada com shampoo Darling de tampa roxa? Aí você sente o cheiro, lembra que usava Darling porque era o mais barato, numa época que pra comprar um Elseve você teria que sacrificar o lanche de uma semana, e vai divagando, divagando... você não entende nada do que eu estou falando? Bom, talvez só eu tenha dessas coisas estranhas. Memórias de cheiros e sabores.

Como sorvete. Cortaram a luz do apartamento esse mês de novo e eu tinha um monte de sorvete na geladeira. Tinha que comer tudo, mesmo que desse dor de barriga, porque o Buscopan é 3 e pouco, o pote da Kibon é 15. Saí da praça assim que o seu Lobato, cobrador dos infernos, desistiu de mim e foi embora. Entrei pela cozinha, fui à geladeira e peguei o pote, uma colherzona que ficou na pia do apartamento quando o último morador se mudou. Sentei no chão da sala e antes de continuar a contar minha saga, deixa eu falar da minha casa.

É deprimente. Olho minha sala talvez tão desolada quanto Brizola olharia os CIEPs hoje em dia. Cresci numa casa grande, de fazenda, laranjeiras e jabuticabeiras e plantações de beringela embora eu não goste de beringela e nem sei dizer se é com G ou com J. Isso aqui está para a casa da minha infância assim como salário de professor está para salário de deputado. Num canto, uma mesinha com um velho telefone fora do gancho, que o antigo morador também não quis levar. A mesinha ficou, o aparelho ficou, e às vezes eu me pergunto se eu deveria mesmo fazer o favor de pagar o aluguel dum apê entregue nestas condições... mas se não fosse a mesinha, não haveria mais nada na sala. Só eu, jogada igual criança no chão, comendo todo o resto do sorvete. O lindo jogo de sofá de vime que meu pai prometia me dar quando eu casasse jamais caberia ali.

No quarto, um colchão no chão, sem lençóis. As únicas coisas que consegui comprar foram justamente a geladeira e o fogão, uns pratos, uns copos e um cachorrinho, que dei o nome de Napoleão, mas morreu depois de dois dias aqui. O espaço era pouco pra mim, um cachorrinho, a geladeira e a goteira no quarto. Estranha, já que moro no quarto andar e tem mais um andar acima do meu. Pensando bem, Waterloo devia ser melhor que este lugar. Napoleão fez bem em morrer.

Sentada na minha sala, eu tinha memórias gustativas aflorando, como comentei no início. A casa onde cresci pertencia à família de minha mãe. Dela, vinha todo o dinheiro que nos sustentava. Aquele pai que eu tanto venerava era sedutor por profissão. Jogava, flertava com as esposas dos prefeitos, apostava, a vida de mamãe não foi legal. Um dia, eu estava sentada na varanda, uma tigela enorme de sorvete nas mãos, e vi quando ela saiu de casa gritando com um cara. Eu já era bem mocinha e ninguém me poupou da verdade: papai tinha vendido a casa e sequer avisou que teríamos que desocupá-la. Fomos pegas de surpresa quando o oficial chegou. Mamãe gritava tanto que a polícia veio buscá-la. E eu, atônita, o rosa do sorvete devia contrastar com o branco pálido da minha cara. Papai ferrou bonito com a vida da gente, ferrou com meus estudos (eu tinha acabado de ser admitida na melhor escola particular da cidade), ferrou com o meu cabelo, foi a partir daí que comecei a usar o Darling. “Você precisa ser bonita o bastante para conquistar um homem rico e legal, Ártemis, mas não o bastante para fazê-lo ser ciumento. Os homens não gostarão de você se você não for bonita, querida, e as mulheres não gostarão se você for.“ Malditas memórias gustativas, olfativas, malditas memórias. A gente podia desligar memórias, né? Selecionar as lembranças. Ter uma chave geral, como a luz cortada do meu apê.

Está ficando escuro demais e não consigo mais escrever. Amanhã talvez eu peça uma vela no vizinho e acabo de contar essa história do “papai querido“.

E parece que beringela é com J.

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