Essa pequena caixa sem cor que alguns ousam chamar de lar.
Empilhada ordenadamente em cima de outras caixas iguais em tamanho, mas
diferentes em conteúdo, que recortam o horizonte da Cidade. Aquele contraste
entre o colorido e a liberdade do céu com o cinza e a clausura dos edifícios
sempre foi o que mais me chamou a atenção no ambiente a minha volta. Gostava de
observar o ponto exato onde o topo dos prédios e as nuvens se encontravam sem
se encostar.
Tirei a
areia dos olhos, respirei fundo e me levantei da cama. Olhei-me no espelho: a
barba sempre por fazer, aquelas olheiras enormes e uma barriga que denunciava
falta de exercícios físicos. Peguei meus óculos na mesa de cabeceira. Sua
armação grossa de cor preta marcava meu rosto, transformando-me na verdadeira
idealização física do conceito de nerd.
Acordei com
a disposição de fazer algo que eu desejava há semanas. Semanas? Semanas não,
meses. Talvez um ano ou mais. Quem sabe desde que eu me mudei para essa pequena
caixa-quarto-sala-cozinha-banheiro.
Tentei dar
um jeito no ninho de corvo que algum dia tive coragem de chamar de cabelo.
Escovei bem os dentes. Ao invés de vestir meu usual traje desleixado dos
sábados de manhã, procurei algo no meu guarda-roupa que não soasse desesperado
por atenção, carinho e afeto, mas passasse a impressão de que eu era uma pessoa
socialmente aceitável. Acabei usando minha camisa d'O Justiceiro, junto com meu
jeans surrado e meu par de Converse favorito.
Dei um bom dia a Monstro, meu
cachorro de estimação. O nome dele foi eu mesmo quem escolhi, pelo fato de ele
ser o cãozinho mais feio do canil. Foi amor a primeira vista. Me vejo muito
nele. Sabe quando dizem que os cães se parecem com seus donos? Pois bem:
nenhuma criança em sã consciência e/ou sem problemas de visão o escolheria no
meio de tantos vira-latinhas adoráveis. Mas isso não queria dizer que ele não
tinha amor para dar, pelo contrário. Monstro é o cão mais atencioso dentre os
três dos quais eu já fui dono nesses meus vinte e dois anos de vida.
Peguei as chaves e saí de casa. Sabia
do desafio que era descer cinco andares de escada a pé, mas eu realmente
precisava de exercícios, além do elevador do prédio ser muito lento e macabro.
Daqueles com grade, sabe? Acho que minhas relações com elevadores nunca mais
foram as mesmas depois que assisti Demônio,
do Shyamalan. Segui na calçada e tentei olhá-la discretamente quando passei em
frente a livraria. Lá estava ela, como eu imaginava que estivesse: com aqueles
cabelos ondulados e ruivos que chegavam ao meio das costas. Ela enrolava uma
mecha, tentava fazer um cacho com o dedo indicador direito. Ela sempre fazia
isso. Era um tique.
Virei-me a tempo de desviar do
poste que estava bem na minha frente. Andei mais uns cem metros e cheguei ao
mercado, que ficava na esquina do quarteirão. Nesse ponto, morar nessa minha
caixa cinza era extremamente prazeroso: tudo que me era vital ficava
relativamente perto e eu não precisava enfrentar essa experiência terrível que
os habitantes da Cidade chamam de transporte coletivo. A herança deixada pelo
meu pai permitiu que eu estudasse o suficiente para poder trabalhar sem sair da
frente do computador. Sou programador, e ganho muito dinheiro para transformar
ideias estúpidas em realidade na rede mundial de computadores. Se eu me sinto
feliz com isso? Sim e não. Sim porque graças a isso tenho tempo e disposição
para colocar meus projetos literários em andamento, e não porque eu odiava meu
trabalho.
Quando me dei conta, minha cesta
do mercado já estava cheia. Conferi a lista de compras que havia feito na noite
anterior quando arquitetei todo o plano. Havia comprado tudo. Dirigi-me até o
caixa, onde a funcionária me cumprimentou com a típica falsidade do “muito
obrigado por me fazer trabalhar num sábado enquanto você está aí fazendo
compras”. Retribuí o sorriso, passei o cartão de débito, peguei minhas sacolas
e saí dali.
Comecei a refazer meu caminho de
volta, com meu coração saltando cada vez mais rápido dentro do meu peito. Tive
que me lembrar várias vezes de que respirar era vital, e usei de muita energia
para tentar controlar o tremor dos meus pés e das minhas mãos. Enfim cheguei em
frente à livraria novamente. Ainda dava tempo de correr para casa, me trancar
com a chave e jogá-la privada abaixo para me livrar de cometer alguma
estupidez. Mas algo dentro de mim me dizia para fazer isso. Eu admirava essa
mulher há muito tempo. Era a única mulher com quem eu conversava, na verdade. Minha
única amiga (tirando Monstro, é claro). Era ela a minha inspiração. E além do
mais, não morreria por perguntar uma coisa. Pelo menos, acho que não.
Entrei.
─ Bom dia, Mário!
─ Bom dia, Sara. Tudo bem? ─ respondi, e já sentia minha garganta secando. Não
sabia se essa intimidade que tínhamos por comprar em sua livraria a alguns anos
era o limite. Queria cruzá-lo, transcendê-lo. E eu estava disposto a tentar,
embora meu corpo e mente relutassem um pouco.
─ Tudo ótimo. O que te traz aqui hoje?
Droga. As... palavras... têm...
que... sair...
─ Bom... É... Na verdade...
Ai, droga. Aqueles olhos cor de mel piscando para mim...
Aquelas sardas... Quase uma versão mais sóbria da Lindsay Lohan.
─ O que você vai... fazer hoje à noite?
Ufa!
─ Hoje à noite? ─ repetiu ela. E começou a pensar.
Enquanto externamente eu esperava tranquilamente uma resposta,
meu estômago fazia movimentos que deixariam uma ginasta olímpica com inveja.
─ Bom, não tenho nenhum compromisso. Por quê?
Tudo correndo como eu imaginei! Como assim? Será que vai dar
tudo certo? Não, impossível. Isso aí está muito fácil.
─ Bom, é que me deu vontade de assistir Antes do Amanhecer e
Antes do Pôr-do-Sol e, bem... sei que você gosta dos filmes e... sabe, seria
bom uma companhia.
Finalmente tomei coragem e olhei diretamente nos olhos dela
ao dizer as últimas palavras da sentença. Vi o sorriso branco se alastrar pelo
seu rosto, aquele sorriso capaz de cegar momentaneamente algum desavisado.
─ Eu adoraria. Mas não posso te dar uma certeza. Tenho uma
coisa para... Digamos, resolver antes de poder sair de casa. Fica num talvez,
ok?
Talvez? Talvez... T-A-L-V-E-Z. Eu cheguei tão longe para
ouvir um “talvez”. Ótimo. Se ela não for a comida que eu acabei de comprar no
mercado vai me alimentar por uma semana inteira. Mas tudo bem, manterei minha
compostura. Afinal, cheguei aqui esperando um “não”. Um talvez já me torna
quase um vencedor. Sei agora exatamente como Rubens Barrichello se sente.
─ Tudo bem. Se você resolver e conseguir ir, bem... Te
espero às oito.
Ela acena com a cabeça.
─ Mais alguma coisa? ─ completa ela com aquele discurso
introjetado de proletária do varejo.
─ Ah, tenho... Será que teria como você conseguir um livro
para mim?
─ Claro! Esse é o meu trabalho, minha especialidade! ─
respondeu ela, inflando o peito, exaltando seu trabalho. E eu só conseguia
pensar em como ela era linda até detrás de um balcão.
Enquanto me ouvia, ela tamborilava os dedos no balcão. Outro
tique.
─ Hmmm... O Certo É O
Contrário, não é? Vou procurar.
Assenti. Peguei minhas sacolas que tinha colocado no chão e,
ao me retirar, disse, tentando forçar um pouquinho de drama:
─ Ok. Muito obrigado. Te vejo à noite, talvez.
O peso das minhas bolsas não me deixou subir os cinco
andares de escada. Resolvi encarar o elevador mesmo. Chamei-o, e em um minuto
ele chegou ao chão, emitindo ruídos que ecoavam no corredor vazio. A grade se
abriu, e, ao abrir a grossa porta de madeira que separa a entrada do elevador
do salão, vejo uma senhora de meia idade saindo daquela caixinha minúscula. Se
eu não me engano, ela mora no 304. Me olhou bem, de cima a baixo, e depois
seguiu caminho. Acho que ela não gostou muito que viu.
Assim que cheguei ao 505, não perdi um minuto sequer:
comecei a faxina, com Monstro me seguindo pela casa. Banheiro, quarto (nunca se
sabe, né?) e por último a sala, meu maior desafio. Como limpar uma estante de
três metros de altura por outros três de largura cheia de CDs, DVDs e livros?
Fui espanando um por um, e tendo insights
ora nostálgicos, ora dramáticos sobre cada um deles.
Cheguei à cozinha lá pelas cinco e comecei a preparar a
comida. Nada de muito inventivo. Só um espaguete com almôndegas e um vinhozinho
de qualidade mediana. Não sei se essa refeição lembra vocês de algum filme de
romance muito peculiar...
Tudo parecia deliciosamente certo às sete e meia. Limpei a
sujeira que tinha feito na cozinha, tomei um banho, fiz minha barba e escolhi
uma roupa legal: uma camisa de botões xadrez, uma calça jeans skinny e meu par
de Converse que parecia fazer parte dos meus pés. Não sei se isso era ansiedade
ou medo de rejeição, mas precisava me olhar no espelho com frequência. Talvez
para buscar reafirmação de minha aparência ou apenas para verificar se tudo
estava no mesmo lugar onde eu havia colocado. Nenhum fio de cabelo se mexeu.
Oito. Sentei no sofá e fiquei encarando a estante. E os mais
de cinquenta livros. E a inúmera quantidade de CDs e DVDs. Não tive coragem de
ligar o som ou a TV, com medo de não ouvir o interfone. Fiquei encarando todos
aqueles objetos inanimados na minha frente, e me dei conta de quão isolado e
conectado ao mundo eu sou ao mesmo tempo. Os livros, as músicas os filmes ─
eles me fizeram viajar, imaginar, me sentir confortável, me consolaram e me
aconselharam, mas me privaram de uma coisa que eu nunca havia sentido falta ou
saudade: calor humano.
Desde que meus pais morreram, no dia do meu aniversário de
dezoito anos, resolvi que iria seguir minha vida sozinho. Não precisa de
parentes crentes me atentando: nada contra a religião, mas tudo contra o
cabresto imposto e o furto com permissão do proprietário. Não queria ser
alienado como eles, então resolvi mudar radicalmente: vim para a Cidade,
comprei essa caixa para mim e cá estou eu, vivendo essa minha medíocre vida.
Nesses quatro anos, raras foram as vezes que eu tive contato
com pessoas de verdade (fora os locais onde o contato era inevitável, como na
faculdade, com funcionários do comércio em geral e com a Sara). Tudo que eu
podia eu comprava na internet. Evitava sair de casa (apesar de ser obrigado a,
pelo menos uma vez por dia, levar Monstro para passear e fazer suas
necessidades). Os moradores do prédio deveriam ter teorias fantásticas sobre
mim. Adoraria escutá-las.
Oito e meia e nada. Nenhum barulho. Nenhum toque no
interfone. Estou pensando seriamente em assistir aos dois filmes comendo todo o
macarrão, diretamente da panela.Vou até a estante e os retiro de lá. Sento ao
sofá novamente e fico lendo as sinopses, imaginando como vai ser Antes da Meia
Noite, a continuação que ainda vai ser lançada. Se Sara aparecer hoje, quem
sabe eu a convide para ir ao cinema comigo assistir?
Oito e quarenta e cinco. Não, ela não vai mais aparecer.
Preparo um prato de macarrão para mim. Bem caprichado, claro, para enfrentar a
derrota do dia. Encho a minha taça de vinho. Coloco uma toalha de prato no
pescoço, como se fosse um babador, já que apesar de ter mais de duas décadas de
idade ainda não prendi a comer macarrão sem me sujar. Ao colocar a primeira
garfada na boca (sem querer me gabar, meu macarrão está mesmo delicioso!), ouço
um ruído. Um som incômodo, que não me lembro de ter ouvido antes.
E mais uma vez, outra vez, e outra. Era o interfone. Saio
correndo e mastigando o macarrão ao mesmo tempo. Tiro o fone do gancho.
─ Oi, Mário?
─ Sara! Vem, pode subir.
Apertei o botão.
─ A porta aí... abriu?
─ Abriu sim, tô subindo!
Fosse ela subir as escadas ou vir de elevador, isso me dava
menos de dois minutos para dar os últimos retoques. Joguei a toalha do pescoço
longe, servi um prato para ela num lugar a mesa bem na minha frente, enchi sua
taça de vinho. Só espero que ela aprecie a refeição. Só espero que dê tudo
certo...
Alguém bate a porta. Abro. Ela me olha com aqueles olhos que
sempre parecem tentar me decifrar e sorri. Eu me detenho um instante para poder
olhá-la e gravar aquele momento: assim como a inacreditável beleza da
heterogeneidade entre o céu e os edifícios, que parecem se tocar no infinito,
mas nunca alcançam um ao outro, vejo meu mundo e o de Sara em uma breve
colisão. Espero não haver erros no cálculo da rota.
Nenhum comentário:
Postar um comentário