25 de agosto de 2013

[204] Episódio 6: Do lado de fora, do lado de dentro.

''The longer you look at an object, the more abstract it becomes, and, ironically, the more real.''
Lucian Freud

(Sem assunto)


Jorge,


eu estou preocupada com você, e isso não é novidade. Também não há de ser novidade o cinismo que espero receber de volta. Já passamos por isso um sem número de vezes: você vai pensar que quero controlar sua vida, vai fazer cara de vítima da Inquisição Espanhola porque busco respostas, porque quero ajudar, porque não suporto ficar de fora. Sim, eu sou aquela que sempre vai achar insuportável ficar do lado de fora mesmo sem jamais ter sido convidada a passar da porta. Mas se não consegui mudar meu jeito depois de tanto tempo, bem, daqui pra frente é ladeira abaixo.

Você não dá notícia há meses. Que não queira falar comigo eu até entendo – e perdoo, como já o fiz tantas outras vezes. (Como minha irmãzinha é boa, como é abnegada”- eu me lembro muito bem do roteiro das nossas brigas, quase não preciso de você para rearranjar nossos argumentos e continuar indefinidamente). Mas você parou de responder os telefonemas da Vivi, e isso é grave. Ela me contou que mais de uma vez bateu à porta e sabia que você estava lá dentro, e mesmo assim não a atendeu.

A única forma de saber que você não escorregou no banheiro e foi devorado pela fauna que habita as caixas de pizza da sua sala foi checar no mercado da esquina se as compras continuam a ser entregues na sua casa. E continuam. Meu principal informante sobre a sua vida nos últimos tempos é um moleque espinhento de 16 anos que parece não conseguir se decidir sobre qual de nós dois é o mais esquisito. Da última vez que me vi dando 10 reais para o guri me dizer que “tipo, ele tava magro a vera e caladão” percebi (antes tarde do que nunca) que isso não estava certo, não podia estar certo. Fomos ambos longe demais.

Somos só nós dois nesse mundo. Nós dois e a Vivi, mas fundamentalmente nós dois, desde que a mãe me levou para tomar sorvete no parque e me explicou que eu ganharia um irmão e que eu teria de ajudar a cuidar dele, porque ele seria pequeno e indefeso e precisaria de uma irmã forte e corajosa para protege-lo do mundo. É verdade que esse é o típico papo das mães para aumentar a autoestima dos filhos mais velhos que estão prestes a perder o monopólio das atenções familiares, mas eu acho que jamais consegui me desprender da gravidade do compromisso que eu havia assumido, ainda que com a cara lambuzada de doce. Desde aquela tarde em que sequer se notava a barriga da mamãe eu sempre pensei em você como meu irmãozinho pequeno. E é por jamais conseguir te enxergar de outra forma que talvez você me odeie – eu sei bem como você se sente em relação a qualquer tipo de autoridade, real ou fictícia, que tente legislar sobre você.

Seja como for, não nos afaste. Quer dizer, eu você não vai conseguir afastar mesmo, por mais que tente. Sou a Senhora Toda Poderosa Controladora Das Vidas Alheias, lembra? Eu sou aquela que vai ficar esperando, sim senhor. E bisbilhotando sua vida, e não deixando você se esquecer de que, ao contrário do que pensa, você não está sozinho nesse mundo. Mas a Vivi, não a afaste. Você a está magoando e eu não sinto apenas por ela, mas pelos dois. Estou aqui do lado de fora, sempre aqui, para sempre, seu merda. Se quiser sair e vir brincar qualquer hora é hora.
Heloísa.






RE: (Sem Assunto)

Helô,

eu sei que você vai ficar mais preocupada do que se eu não respondesse nada, ou respondesse com alguma alegoria obscura que eu sei e você sabe que ninguém mais entenderia, e que serviria apenas para me dar a palavra afinal sobre o assunto importantíssimo que é a minha vida e como eu a estou desperdiçando. Mas a verdade é: você está certa. Pronto, você tem a declaração por escrito, pode me mandar internar. Não era isso o que você queria?

Não, não era a minha intenção usar qualquer tipo de ironia, é apenas a força do hábito. Se você diz que não consegue mais se consertar, imagine eu. É que se não a ironia, então o quê? A história de como tenho traduzido o mínimo possível para pagar a conta de luz e a de internet, e como no resto do tempo eu fico olhando para o teto, sem a menor paciência para dormir ou qualquer vontade de me mexer? Ah, você quer mesmo saber que eu não troco de roupa há já não sei quantos dias? Que seja, que seja. Vou deixar a ironia atrás da porta, talvez isso a faça feliz. Não, isso também não é o que eu queria dizer. Tento de novo: talvez isso me faça feliz, ou um pouco menos apático. Foi uma dificuldade me decidir por responder seu e-mail, mas agora que comecei é como se entrasse de repente um pouco de ar fresco pelas janelas fechadas. Acho que eu preciso conversar, sim. Me desculpa.

Eu nem sabia o quanto, mas tem sido muito difícil desde que a Cristina me pôs para fora de casa. E não é nem tanto pela Cristina-Cristina, sabe, acho que é a reação acumulada por todas as Cristinas que vieram antes, namoradas ou planos, tudo o que o mundo-Cristina das relações e dos compromissos – para além de tudo o que eu queria e que, de repente ou se esfarelava na minha mão ou não me importava mais. Achava que, com o apartamento novo, também seria fácil alugar uma nova vida. Mas não. A sensação foi a de ir desacelerando aos poucos, até parar completamente. No início eu achava que era apenas uma daquelas minhas fases mais melancólicas em que não sinto vontade de ler, de sair de casa ou de falar com ninguém. Todo mundo passa por isso, embora nem todos possam se dar ao luxo de, digamos, se isolar por um fim de semana inteiro. Morar sozinho, eu pensava orgulhoso desse meu novo status, tinha lá as suas compensações.

Mas o fim de semana virou duas semanas inteiras, e depois um mês e por fim dois. Deixei o celular descarregar e a conta vencer, já que faço os contatos com a editora via e-mail e as compras online. As únicas criaturas vivas com quem tinha breves contatos era o seu espiãozinho cheio de acne e a Cotoco, a lagartixa que divide o apartamento comigo e que nesse meio tempo até restaurou o rabo original que eu sem querer arranquei por descuido, assim como faço com todas as pessoas que me cercam, mas essa já é uma outra história e eu sinto que estou me perdendo.  

Quando o tempo parou de vez eu percebi que a Vivi estava batendo na porta e implorando para que eu abrisse, cantando músicas que eu considero particularmente irritantes, meio que adivinhando que só assim eu talvez tivesse forças para sair da cama e xingá-la por ser uma pirralha tão adoravelmente perversa que ela é. Acontece que ela é ainda uma criança e não merece ser exposta ao refugo de tio que deu o azar de ganhar na loteria genética. Tive vergonha do meu estado, da minha casa, do meu ânimo e do amor que eu não me lembrava que existia porque, é claro, estava como sempre com a cabeça enfiada dentro do meu umbigo exercitando aquela velha autocomiseração que você sempre criticou em mim. E adivinhe de novo: você está certa, sua vaca prepotente. Pelo menos eu consegui te surpreender, certo? Ao menos isso.

Você disse que é sempre a pessoa que está do lado de fora e que odeia isso, e eu também tenho que concordar. Nunca te deixei entrar, não de verdade, mas não pelas razões que você pensa. Não te odeio, sua maluca, muito pelo contrário. Sou incapaz de me ressentir com seu amor tirânico e potencialmente castrador que você sempre tentou me enfiar goela abaixo. Ok - talvez eu já tenha me ressentido, mas isso é passado. Hoje em dia gosto de atiçá-la do mesmo modo que fazia aos 5, aos 10, aos 15 para ver o quanto mudamos e como, apesar disso, certas coisas continuam aparentemente iguais.

Embora eu não possa ter memória da tarde em que você prometeu à mãe que cuidaria de mim, mas juro que posso quase vê-la com seus shorts curtos, sua franja grossa e os olhos escuros muito sérios, apesar de todo o grude do sorvete. E eu admiro que você tenha se comprometido tão fielmente com uma vida que mudaria completamente a sua e a qual você poderia simplesmente ignorar ou fazer birra, como qualquer criança ciumenta tem direito nesse mundo. Ter se tornado a pequena protetora de um serzinho que você até então não poderia conhecer ou amar é algo admirável, embora eu sempre tivesse dito justamente o contrário – que você era na verdade capacho da mãe, carente de atenção, a perfeição em forma de filha, mãe, irmã, esposa, mulher. Eu sou um merda mas você, convenhamos, é um pé no saco com seu verniz de infalibilidade. Como não me rebelar?

Talvez seja por isso que fui mais insuportável com você do que com todas as outras pessoas. Acho que eu queria saber até onde eu podia ir. Testar esse laço que nos prende até que você finalmente dissesse “Cansei dessa porra, vou cuidar da vida”, mas você nunca disse – não importando o quão escroto, estúpido, arrogante e cretino (meu novo insulto favorito, nem pergunte) eu fosse. E se eu não te deixei entrar por todos esses anos e mesmo pelos últimos meses é simplesmente porque não queria que você visse que desperdiçou esse tempo todo de vida lutando pelo tão pouco que eu sou.

Mas você não vai desistir, né? Ao seu modo – e de um jeito muito mais funcional para o “mundo real”, devo dar o braço a torcer – você é tão perturbada quanto eu. Então é isso, desisto eu. Não tenho coragem para sair e brincar: mal consigo terminar esse e-mail, o gás de súbito acabou. Mas olha, vou destrancar as portas. A do apartamento e todas as outras. Se você quiser entrar, é só virar a maçaneta. Se era acesso ao lado de dentro que você queria, sinto muito, mas você acabou de conseguir. Desculpa, desculpa mil vezes, desculpa por tudo, vem, vem logo, por favor.

J.



Um comentário:

  1. o tipo de texto que me dá muito orgulho da existência deste blog, viu.

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