31 de janeiro de 2013

[505] Episódio 2: Ritual da Chuva Seca



E lá estava ela, sentada em minha frente, me contando sobre sua vida. "Descobri" que Sara tinha um filho - Daniel, de quatro anos - e que ele era a sua razão de viver. Nada que eu já não soubesse graças a uma breve visita ao seu perfil no facebook. A cada palavra proferida, eu tinha certeza que ela era uma mulher genial. Era bom ter alguém para conversar, alguém que realmente entendesse meu raciocínio rápido e que muitas vezes divagava em assuntos frívolos. Falávamos de violência urbana, Quentin Tarantino, escândalos políticos, J. K. Rowling e a novela das nove com a mesma seriedade. Compartilhávamos nossas teorias da conspiração sobre os mais diversos assuntos nas mais diversas áreas, sem julgamentos.
O que plantou a tempestade no nosso jantar foi um diálogo aparentemente simples:
─ E você, Mário? O que você faz no seu tempo livre?
Com um sorriso, respondi:
─ Não é meio óbvio? Eu leio, assisto filmes e ouço música.
─ Só?
─ Ah, e escrevo também.
─ Verdade, seu livro! Sobre o que é mesmo?
─ Sobre um detetive que investiga um serial killer...
─ Que mata as pessoas recriando cenas famosas do cinema, lembrei. E como vai o desenrolar da história?
─ Bom, até agora só consegui escrever o primeiro assassinato. Um Cão Andaluz.
─ Não brinca, com a gilete no...
─ Exatamente.
─ Ai, tenho pavor dessa cena! ─ exclamou ela, fazendo uma careta.
           Dei uma bela gargalhada com a reação dela.
─ É, bem marcante ela. Mas ultimamente ando com bloqueio criativo.
─ Não me admira - disse ela, séria, olhando nos meus olhos.
           Cheguei a me assustar.
─ Não se admira? Por quê? - indaguei.
─ Você vive uma vida nas sombras.
─ Vida nas sombras? Hein?
─ Tudo que você faz é ler esses livros, ouvir essas músicas, ver esses filmes. Sabe o Mito da Caverna?
─ Sei.
─ Então... Você tá fazendo basicamente aquilo. Assistindo sua vida através de sombras. Acha que pode viver a vida da cultura que absorve. Mas não se esqueça que a música, os livros e os filmes não refletem as pessoas de verdade:  são só o que os realizadores querem que elas sejam.
"O que os realizadores querem que elas sejam". Não tinha nenhum argumento para discutir. Ela tinha razão! Baseava a minha vida e todos os meus conhecimentos sobre a sociedade que me cercava, tudo que eu sabia daquelas pessoas que viviam oprimidas por um sistema capitalista e moravam em cubos monocromáticos como o meu em obras inventadas por outras pessoas, que podem ter tanto traquejo social e experiência prática em sociedade quanto eu. Só para confirmar, perguntei:
─ Então você quer dizer que eu devo sair daqui e me aventurar em todos os perigos da Cidade?
─ Basicamente. Mas no mundo das pessoas normais, isso se chama viver - retrucou ela, com um sorrisinho sarcástico no canto da boca.
Terminamos de comer e a convidei para sentar no sofá. Continuamos conversando, mas Sara preferiu observar cada componente de minha estante. Até que de repente nosso papo foi entrecortado por uma exclamação:
─ Adoro esse cd!
Ela o retirou da estante. Com o maior cuidado, abriu a caixa e o pôs no aparelho de som.
Eu fiquei em silêncio, observando seus movimentos graciosos e imaginando seus próximos passos. Usou os botões do aparelho para selecionar a faixa.
Faixa 10, indicava o display. Olhei para a capa em suas mãos: "Umbigobunker!?", do Jay Vaquer. Ela deu o play, se virou para mim, sorriu e me chamou, fazendo um gesto com as mãos.





"Quase não se contém
A ponto de comprometer
Custa encarar escadarias íngremes
Das relações
Fardo que lhe cai bem
Um alívio por também "sofrer"
Tenta enxergar infância
Nas crianças das recordações"

Assim que a música começou, ela começou a dançar, a rodopiar pela sala do meu apartamento. Nunca tinha entendido muito bem como a dança era uma forma de expressão tão forte até aquele momento. Junto com a música, com letra bem significativa, eu podia entendê-la. Eu a via transparente e cristalina feito água. Podia lê-la sob todos os borrões e cicatrizes do passado. Naquele momento ali, no meu apartamento, na minha sala de estar, ela só estava tentando ser ter a liberdade que seu tedioso cotidiano de vendedora e mãe trancafiou. Aqui, mesmo comigo, ela era livre.
Era tão forte que eu também não consegui resistir. Em um minuto e meio já me vi rodopiando pelo meu próprio apartamento, me sentindo livre das amarras que me prendiam. E a sensação de liberdade que percorria cada centímetro do meu corpo me fez perder o controle dos meus próprios movimentos. Eu só me movia como achava que tinha que me mover, era instintivo. Ali, eu entendi que eu poderia ser quem eu quisesse, poderia forjar uma vida em um livro como todos os outros autores daquela minha estante, sim. Só dependia de mim mesmo. Mas para que fingir?
Aproximei-me de Sara. Olhei em seus olhos e sorri. Ela sorriu de volta. A abracei pela cintura e recostei meu queixo sobre seu ombro, enquanto nossos pés continuavam a dança, agora sincronizados.
─ Sara... ─ chamei baixinho, com a boca quase em seu ouvido.
Ela fez que sim com a cabeça para mostrar que tinha escutado.

“Numa fome de santa ceia
Insetos presos na mesma teia
Dançam índios da mesma aldeia
Celebrando o ritual da chuva seca”

─ Me ensina a viver?

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