E lá estava ela, sentada em minha frente, me
contando sobre sua vida. "Descobri" que Sara tinha um filho - Daniel,
de quatro anos - e que ele era a sua razão de viver. Nada que eu já não
soubesse graças a uma breve visita ao seu perfil no facebook. A cada palavra
proferida, eu tinha certeza que ela era uma mulher genial. Era bom ter alguém
para conversar, alguém que realmente entendesse meu raciocínio rápido e que
muitas vezes divagava em assuntos frívolos. Falávamos de violência urbana,
Quentin Tarantino, escândalos políticos, J. K. Rowling e a novela das nove com
a mesma seriedade. Compartilhávamos nossas teorias da conspiração sobre os mais
diversos assuntos nas mais diversas áreas, sem julgamentos.
O que plantou a tempestade no nosso jantar foi um
diálogo aparentemente simples:
─ E você, Mário? O que você faz no seu
tempo livre?
Com um sorriso, respondi:
─ Não é meio óbvio? Eu leio, assisto
filmes e ouço música.
─ Só?
─ Ah, e escrevo também.
─ Verdade, seu livro! Sobre o que é
mesmo?
─ Sobre um detetive que investiga um
serial killer...
─ Que mata as pessoas recriando cenas
famosas do cinema, lembrei. E como vai o desenrolar da história?
─ Bom, até agora só consegui escrever o
primeiro assassinato. Um Cão Andaluz.
─ Não brinca, com a gilete no...
─ Exatamente.
─ Ai, tenho pavor dessa cena! ─ exclamou
ela, fazendo uma careta.
Dei uma bela gargalhada com a reação dela.
─ É, bem marcante ela. Mas ultimamente
ando com bloqueio criativo.
─ Não me admira - disse ela, séria,
olhando nos meus olhos.
Cheguei a me assustar.
─ Não
se admira? Por quê? - indaguei.
─ Você vive uma vida nas sombras.
─ Vida nas sombras? Hein?
─ Tudo que você faz é ler esses livros,
ouvir essas músicas, ver esses filmes. Sabe o Mito da Caverna?
─ Sei.
─ Então... Você tá fazendo basicamente
aquilo. Assistindo sua vida através de sombras. Acha que pode viver a vida da
cultura que absorve. Mas não se esqueça que a música, os livros e os filmes não
refletem as pessoas de verdade: são só o
que os realizadores querem que elas sejam.
"O que os realizadores querem que elas sejam". Não tinha
nenhum argumento para discutir. Ela tinha razão! Baseava a minha vida e todos
os meus conhecimentos sobre a sociedade que me cercava, tudo que eu sabia
daquelas pessoas que viviam oprimidas por um sistema capitalista e moravam em
cubos monocromáticos como o meu em obras inventadas por outras pessoas, que
podem ter tanto traquejo social e experiência prática em sociedade quanto eu.
Só para confirmar, perguntei:
─ Então você quer dizer que eu devo
sair daqui e me aventurar em todos os perigos da Cidade?
─ Basicamente. Mas no mundo das pessoas
normais, isso se chama viver - retrucou ela, com um sorrisinho sarcástico no
canto da boca.
Terminamos de comer e a convidei para sentar no
sofá. Continuamos conversando, mas Sara preferiu observar cada componente de
minha estante. Até que de repente nosso papo foi entrecortado por uma
exclamação:
─ Adoro esse cd!
Ela o retirou da estante. Com o maior cuidado, abriu
a caixa e o pôs no aparelho de som.
Eu fiquei em silêncio, observando seus movimentos
graciosos e imaginando seus próximos passos. Usou os botões do aparelho para
selecionar a faixa.
Faixa 10, indicava o display. Olhei para a capa em
suas mãos: "Umbigobunker!?", do Jay Vaquer. Ela deu o play, se virou
para mim, sorriu e me chamou, fazendo um gesto com as mãos.
"Quase
não se contém
A
ponto de comprometer
Custa
encarar escadarias íngremes
Das
relações
Fardo
que lhe cai bem
Um
alívio por também "sofrer"
Tenta
enxergar infância
Nas
crianças das recordações"
Assim que a música começou, ela começou a dançar, a
rodopiar pela sala do meu apartamento. Nunca tinha entendido muito bem como a
dança era uma forma de expressão tão forte até aquele momento. Junto com a
música, com letra bem significativa, eu podia entendê-la. Eu a via transparente
e cristalina feito água. Podia lê-la sob todos os borrões e cicatrizes do
passado. Naquele momento ali, no meu apartamento, na minha sala de estar, ela
só estava tentando ser ter a liberdade que seu tedioso cotidiano de vendedora e
mãe trancafiou. Aqui, mesmo comigo, ela era livre.
Era tão forte que eu também não consegui resistir.
Em um minuto e meio já me vi rodopiando pelo meu próprio apartamento, me
sentindo livre das amarras que me prendiam. E a sensação de liberdade que
percorria cada centímetro do meu corpo me fez perder o controle dos meus
próprios movimentos. Eu só me movia como achava que tinha que me mover, era
instintivo. Ali, eu entendi que eu poderia ser quem eu quisesse, poderia forjar
uma vida em um livro como todos os outros autores daquela minha estante, sim. Só
dependia de mim mesmo. Mas para que fingir?
Aproximei-me de Sara. Olhei em seus olhos e sorri.
Ela sorriu de volta. A abracei pela cintura e recostei meu queixo sobre seu
ombro, enquanto nossos pés continuavam a dança, agora sincronizados.
─ Sara... ─ chamei baixinho, com a boca quase em
seu ouvido.
Ela fez que sim com a cabeça para mostrar que
tinha escutado.
“Numa
fome de santa ceia
Insetos
presos na mesma teia
Dançam
índios da mesma aldeia
Celebrando
o ritual da chuva seca”
─ Me ensina a viver?
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