15 de janeiro de 2013

[204] episódio piloto: Por uma psicologia das latas de lixo


É de conhecimento geral que é possível descobrir muitas coisas ao vasculhar o lixo de alguém. No entanto, talvez poucos saibam que todas as informações apuradas são consequência direta de um ponto de partida específico: a identificação do proprietário do lixo em em três categorias principais, a saber: 1) pessoas que separam materiais recicláveis; 2) pessoas que não separam e 3) pessoas que separam apenas de vez em quando. Se um dia eu tiver que ensinar alguém a garimpar informações no lixo essa será minha primeira lição.


Engana-se quem pensa que tal classificação serve para tecer hipóteses sobre uma pessoa a partir de seu comprometimento com a coleta seletiva. Na verdade, a disposição (ou ausência dela) para separar plásticos, e metais tem muito mais a ver com um certos estados de espírito e formas de encarar a vida do que com o nível de consciência ecológica de cada um. Ou, ao menos, o nível de consciência ecológica que cada um alega possuir. Um estudo de caso clássico que apresentaria nesse curso é Cristina. Vegetariana, com 12 horas semanais dedicadas a um trabalho voluntário numa ONG de adoção de cachorrinhos. Mas, ah, ela escondia um segredo sórdido dos coleguinhas protetores dos animais: Cristina era um Tipo 3.

Nos Dias Bons tinha paciência para dividir o lixo em dois sacos, mas os Dias Bons ocorriam apenas duas vezes por semana, coincidentemente quando não precisava dar aulas. Cansei de encontrar restos do jantar misturados com frascos vazios de shampoo. Nos sábados e domingos o responsável por levar o lixo para fora era eu, e eu, se ainda não está óbvio, sou um Tipo 1 - mesmo que durante um tempo, há alguns meses, eu tenha enviado sinais confusos para o latão do andar.

Se posso me defender, digo que fiz isso apenas porque estava desconfiado do vizinho do 302; outro Tipo 1 tão óbvio quanto a meia careca que deve ter adquirido antes dos 25 anos. Quem não possui instintos apurados - eu diria intuição, mesmo sob o risco de parecer pouco científico - não vai longe nesse negócio: algo me dizia que ele andava espiando nosso lixo. Pouco tempo depois, pelo tom áspero do “boa noite” que trocamos quando nos encontramos no elevador, percebi que não apenas minhas suspeitas não eram injustificadas, mas também que meus subterfúgios não o haviam enganado. Ao menos ele ficou sabendo que não estava lidando com nenhum amador, o que fez com que todo o trabalho que tive (para além de haver transgredido a muito custo minha natureza organizada e criteriosa) não parecesse inútil.


Mas, no fim das conta foi inútil, devo admitir. De nada adiantou estabelecer um subtexto que nortearia as bases da minha convivência com o vizinho do 302, porque não chegamos a aproveitá-lo. Menos de um mês depois do incidente do elevador Cristina avisou que eu precisaria encontrar outro lugar para morar. Não me pegou de surpresa: sou um bom analista de sinais e o lixo é apenas um dos meus muitos informantes.


Para além de ter sido um mês sem Dias Bons, consegui entrever - após ter reconstruído os pedaços de uma conta de celular - diversas ligações após a meia-noite para a melhor amiga dela. Talvez eu não precisasse ter ido tão longe, uma vez que tivemos brigas imensas em que Cristina, gritando, me acusava de loucura, paranoia e de assediar o vizinho do 302 no elevador com o que ela chamava de “minhas teorias da conspiração”. Mas o que posso fazer? Sou um Tipo 1 até o fim, mesmo que isso signifique que todas as minhas relações tenham como destino certo o latão de matéria orgânica.


Dos apartamentos que circulei na página dos classificados (que não jogarei fora: não darei o gosto da vitória ao vizinho do 302) o meu preferido situa-se em um edifício cinza, no centro da cidade. As taxas são baratas e a localização, perfeita - vista para a rua e latas de lixo amplas a cada andar. Não consegui despistar a mocinha da corretora para saber mais sobre meus vizinhos, mas não pude me dar ao luxo de esperar por informações adicionais para me decidir: Cristina foi passar uns dias com a mãe e avisou que me queria fora de casa durante esse intervalo. Terei de contar com a sorte, com a intuição e com meu ex-sogro que se ofereceu para fiar o aluguel, desde que eu mantivesse a maior distância possível da vida - e dos lixos, como ele fez questão de salientar - daquela família. Preciso mencionar que o pai de Cristina era um típico 2? Acho que não.


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