(imagem: Quadro de
Salvador Dali “Do Relógio”)
“O Tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. o Tempo
respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem.” (Trava-línguas Popular)
Tempus, oris¹
De
um sobressalto Mirella despertou. Peito arfando, agitado, gotas de suor
escorriam pelo rosto. Sempre o mesmo tipo de sonho. Sentou-se entre os lençóis
emaranhados, recompôs os cabelos e procurou pelo cigarro. Tateou a cabeceira da
cama, as mesinhas que ficavam ao lado da mesma e só depois lembrou que havia
deixado um maço para alguma emergência nas gavetas da sua mesa do escritório,
no trabalho. Fazia tempo que não fumava. Havia prometido que naquele ano
pararia. Promessa feita a Yemanjá na virada do ano. Estava conseguindo se não
fossem os sonhos...
Fixou
os olhos no despertador para ver as horas. Só uma brecha de luz entrava pela
persiana pouco iluminando aquele ambiente. Acendeu a luminária que ficava na
cabeceira da cama.
- Não é possível! 3h04 da madrugada!
Levantou-se
e foi até a cozinha para ver se encontrava o sono, quem sabe ele havia fugido e
se escondido por ali. Desejou ardentemente encontrá-lo naquela fatia de pudim
de leite ou na compota de doce de banana. Bebeu um copo de água afinal pesaria
menos em sua consciência. Que diabos! Acordaria com olheiras novamente e haja
creme para disfarçar suas noites mal dormidas. Ouviria as mesmas piadinhas
infames no escritório e disfarçaria com um sorrisinho debochado. Cambada de
gente mal amada!
Acendeu
um incenso, velas aromáticas e foi até a janela sentir um pouco do ar fresco
que entrava prometendo mudança de tempo. Mudança de tempo para quem? Tudo que
queria, naquele momento, era mudança de tempo. Tempo de agir. De parar de
pensar. Esquecer. Viver mais e sonhar menos. Tempo de destemperar e gritar.
Tempo atemporal para sentir o frescor que a idade madura lhe trazia. Franziu a testa ao evocar este último pensamento
tão clichê.
- Frescor? Idade madura? Como assim? Porra nenhuma! Tenho que encarar que estou
envelhecendo e velhice anda ao par com enfermidades, rugas e mau humor. Aqui
mesmo neste prédio velho e sem graça tenho exemplos disso!
Neste
mesmo instante em que esbravejou e vomitou suas mágoas contra o tempo, colocou
automaticamente a mão na boca para logo retirá-la e sorriu quando se deu conta
que brigava consigo mesma em um tom mais alto e que seus vizinhos poderiam
ouvi-la. Tinha a preocupação de não incomodá-los e sempre que podia lhes era
gentil apesar de discordar da possibilidade de se possuir animais no prédio.
Cachorros latem e uivam justamente à noite e gatos fedem. Mas não desgostava
deles, apenas os suportava!
Estava
se referindo aos vizinhos, claro!
Recostou-se
na esquadria fria da janela e fitou o cintilar das luzes vermelha, verde e
amarela do sinal luminoso à frente de sua vista e que piscavam alternadamente conduzindo
os carros a uma dança frenética de vai e vem conforme sua coloração. Fixou
tanto o olhar que elas se fundiram num verdadeiro espetáculo cromático.
Hipnotizada
entregou-se aos seus devaneios.
Pensou
em Luis que ainda não dera sinal de vida. Haveria ele desistido? Deveria ela
entrar em contato novamente por e-mail? E Carlos? O que faria com ele? Ainda não
tivera coragem de terminar tudo. Um vai e vem de romances mal resolvidos e
inacabados revolviam em sua mente. Muitos homens, muitas experiências e nenhuma
vida dividida com amizade, companheirismo, dedicação. Será que o futuro lhe
reserva um encontro definitivo?
- Droga! Preciso dormir! Merda de insônia!
Esfregou
os olhos, fechou a janela e foi até o banheiro.
Abriu
a gaveta do armário que fica embaixo da pia. Por um instante vislumbrou a
possibilidade de tomar uma droga e apagar. Detestava remédios e prezava pelos
métodos mais naturais. Não entendia porque os guardava ainda. Parou por um
instante, hesitante. Apoiando as duas mãos no mármore da pia abaixou a cabeça e
depois a pendeu para trás pensativa. Ficou imóvel por alguns segundos até que
acabou encarando o seu rosto pálido no espelho relembrando do tempo em que
tantas vezes se drogara inutilmente. Desistiu.
Voltou
para seu quarto. Preferiu pegar um livro.
Sentou-se
novamente na cama, ajeitou seu almofadão nas costas, prendeu os cabelos em um coque
no alto da cabeça, ajustou seus óculos e abriu o livro na página que havia
parado na noite anterior retomando o capítulo que abordava sobre os arquétipos
astrológicos.
Astrologia
era uma de suas paixões.
Na
verdade, tudo que se referia a esoterismo, ciências ocultas e simbolismos era
alvo de sua atenção. Sempre que podia comprava livros e pesquisava artigos
sobre o tema. Frequentou aulas, assistiu a seminários e até tentou finalizar um
curso de formação em astrologia não sendo possível por falta de tempo para
dedicar-se. Então acabou se tornando autodidata.
Levantou
os olhos sobre os óculos deslizando-os com os dedos sobre a saliência do nariz
e ao observar as horas no relógio percebeu que o tempo voara enquanto lia. O
dia não tardaria a despertar. Um fiasco de sono lhe acariciava a cabeça e fazia
que seus olhos sentissem o seu peso. Fechou o livro, jogou o almofadão no chão,
puxou o lençol, desligou a luminária e tentou dormir.
Não
fossem os latidos do cachorro do apartamento 505 com certeza teria adormecido
antes do previsto. No entanto, pela janela de seu quarto, além dos cânticos
caninos podia ouvir também sirenes, buzinas, vozes e passos apressados, lá
embaixo, na calçada. Num gesto desesperador agarrou os travesseiros e
colocou-os nos ouvidos tentando abafar os sons inoportunos.
Tarde
demais.
O
despertador esbravejou suas horas marcadas para o tempo que se julga ser o
tempo mais importante da nossa vida: o tempo que se tem.
[1]
[F.: Do lat. tempus, oris. Ideia de '
tempo': cron(o)- (cronômetro); -cronia (sincronia); -crono (síncrono); -evo
(longevo).]
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