26 de janeiro de 2013

[403] Episódio 2: Tempus, Oris



(imagem: Quadro de Salvador Dali “Do Relógio”)

“O Tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. o Tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem.” (Trava-línguas Popular)

Tempus, oris¹

De um sobressalto Mirella despertou. Peito arfando, agitado, gotas de suor escorriam pelo rosto. Sempre o mesmo tipo de sonho. Sentou-se entre os lençóis emaranhados, recompôs os cabelos e procurou pelo cigarro. Tateou a cabeceira da cama, as mesinhas que ficavam ao lado da mesma e só depois lembrou que havia deixado um maço para alguma emergência nas gavetas da sua mesa do escritório, no trabalho. Fazia tempo que não fumava. Havia prometido que naquele ano pararia. Promessa feita a Yemanjá na virada do ano. Estava conseguindo se não fossem os sonhos...

Fixou os olhos no despertador para ver as horas. Só uma brecha de luz entrava pela persiana pouco iluminando aquele ambiente. Acendeu a luminária que ficava na cabeceira da cama.

- Não é possível! 3h04 da madrugada!

Levantou-se e foi até a cozinha para ver se encontrava o sono, quem sabe ele havia fugido e se escondido por ali. Desejou ardentemente encontrá-lo naquela fatia de pudim de leite ou na compota de doce de banana. Bebeu um copo de água afinal pesaria menos em sua consciência. Que diabos! Acordaria com olheiras novamente e haja creme para disfarçar suas noites mal dormidas. Ouviria as mesmas piadinhas infames no escritório e disfarçaria com um sorrisinho debochado. Cambada de gente mal amada!

Acendeu um incenso, velas aromáticas e foi até a janela sentir um pouco do ar fresco que entrava prometendo mudança de tempo. Mudança de tempo para quem? Tudo que queria, naquele momento, era mudança de tempo. Tempo de agir. De parar de pensar. Esquecer. Viver mais e sonhar menos. Tempo de destemperar e gritar. Tempo atemporal para sentir o frescor que a idade madura lhe trazia.  Franziu a testa ao evocar este último pensamento tão clichê.

- Frescor? Idade madura? Como assim? Porra nenhuma! Tenho que encarar que estou envelhecendo e velhice anda ao par com enfermidades, rugas e mau humor. Aqui mesmo neste prédio velho e sem graça tenho exemplos disso!

Neste mesmo instante em que esbravejou e vomitou suas mágoas contra o tempo, colocou automaticamente a mão na boca para logo retirá-la e sorriu quando se deu conta que brigava consigo mesma em um tom mais alto e que seus vizinhos poderiam ouvi-la. Tinha a preocupação de não incomodá-los e sempre que podia lhes era gentil apesar de discordar da possibilidade de se possuir animais no prédio. Cachorros latem e uivam justamente à noite e gatos fedem. Mas não desgostava deles, apenas os suportava!

Estava se referindo aos vizinhos, claro!

Recostou-se na esquadria fria da janela e fitou o cintilar das luzes vermelha, verde e amarela do sinal luminoso à frente de sua vista e que piscavam alternadamente conduzindo os carros a uma dança frenética de vai e vem conforme sua coloração. Fixou tanto o olhar que elas se fundiram num verdadeiro espetáculo cromático.

Hipnotizada entregou-se aos seus devaneios.

Pensou em Luis que ainda não dera sinal de vida. Haveria ele desistido? Deveria ela entrar em contato novamente por e-mail? E Carlos? O que faria com ele? Ainda não tivera coragem de terminar tudo. Um vai e vem de romances mal resolvidos e inacabados revolviam em sua mente. Muitos homens, muitas experiências e nenhuma vida dividida com amizade, companheirismo, dedicação. Será que o futuro lhe reserva um encontro definitivo?

- Droga! Preciso dormir! Merda de insônia!

Esfregou os olhos, fechou a janela e foi até o banheiro.

Abriu a gaveta do armário que fica embaixo da pia. Por um instante vislumbrou a possibilidade de tomar uma droga e apagar. Detestava remédios e prezava pelos métodos mais naturais. Não entendia porque os guardava ainda. Parou por um instante, hesitante. Apoiando as duas mãos no mármore da pia abaixou a cabeça e depois a pendeu para trás pensativa. Ficou imóvel por alguns segundos até que acabou encarando o seu rosto pálido no espelho relembrando do tempo em que tantas vezes se drogara inutilmente. Desistiu.

Voltou para seu quarto. Preferiu pegar um livro.

Sentou-se novamente na cama, ajeitou seu almofadão nas costas, prendeu os cabelos em um coque no alto da cabeça, ajustou seus óculos e abriu o livro na página que havia parado na noite anterior retomando o capítulo que abordava sobre os arquétipos astrológicos.

Astrologia era uma de suas paixões.

Na verdade, tudo que se referia a esoterismo, ciências ocultas e simbolismos era alvo de sua atenção. Sempre que podia comprava livros e pesquisava artigos sobre o tema. Frequentou aulas, assistiu a seminários e até tentou finalizar um curso de formação em astrologia não sendo possível por falta de tempo para dedicar-se. Então acabou se tornando autodidata.

Levantou os olhos sobre os óculos deslizando-os com os dedos sobre a saliência do nariz e ao observar as horas no relógio percebeu que o tempo voara enquanto lia. O dia não tardaria a despertar. Um fiasco de sono lhe acariciava a cabeça e fazia que seus olhos sentissem o seu peso. Fechou o livro, jogou o almofadão no chão, puxou o lençol, desligou a luminária e tentou dormir.

Não fossem os latidos do cachorro do apartamento 505 com certeza teria adormecido antes do previsto. No entanto, pela janela de seu quarto, além dos cânticos caninos podia ouvir também sirenes, buzinas, vozes e passos apressados, lá embaixo, na calçada. Num gesto desesperador agarrou os travesseiros e colocou-os nos ouvidos tentando abafar os sons inoportunos.

Tarde demais.

O despertador esbravejou suas horas marcadas para o tempo que se julga ser o tempo mais importante da nossa vida: o tempo que se tem.



[1]  [F.: Do lat. tempus, oris. Ideia de ' tempo': cron(o)- (cronômetro); -cronia (sincronia); -crono (síncrono); -evo (longevo).]

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