18 de janeiro de 2013

[407] Episódio Piloto - A Flor do Asfalto

Uma vez mais estou eu aqui, sentada no banco da praça às cinco da tarde. Distraidamente disputando espaço na sombra com meninos do tráfico, velhinhos e prostitutas. Porque toda praça de cidade grande é cinza e é cheia de gente cinza, suas vidas cinzas como o chão que pisam. Nem sei de onde tirei a ideia besta de não lutar pelo verde-mato que viu nascer. Eu queria palcos e shows de luzes, eu vim para estudar poesia, mas ainda na rodoviária pude ver a fumaça industrial gritando que ali não era o meu lugar. Mas eu não poderia voltar. Me sentia cuspida.

Pode parecer uma simples metáfora de “oh, como a garotinha do interior se sente presa na vida urbana“, mas a verdade é que estou aqui fugindo do aluguel. Nada romântico confessar isso, mas só neste mês é a terceira vez que o síndico aparece por lá. Que eu vou dizer? Abrir meu melhor sorriso e pedir que me dê mais uma semana, como fiz nas outras duas vezes? Oferecer uma caipirinha e falar sobre como o tempo está cinza nesse lugar de merda, que meu perfume de flores faz um favor a esta fedentina industrial? É olhar a cara condescendente daquele barbudo e lembrar a do meu pai. “Você ainda vai se ferrar e muito.“ Hello, papai, seu emprego de Nostradamus da vida da Ártemis está garantido, viu? Pago com caipirinhas, o senhor vai adorar.

Ele poderia ter me chamado de Maria, Juliana, Géssica, Ana, Alice, Samara, Ivete, até Bianca ou Carolina, mas me chamou de Ártemis. “A deusa da caça, meu amor.“ Ok, então por que não Diana? Tem noção da chatice que é explicar esse nome de merda pras pessoas? “Nome de flor, querida?“ “Não, nome de deusa. Deusa da caça e da vida selvagem. É que meu pai era Nostradamus e previu que eu iria vir morar nessa selvageria de Cidade, e em algum momento ia esperar ônibus justo com a senhora“. Mamãe dizia que se ele tivesse colocado Diana, eu choraria por não ter um nome tão legal como Ártemis. Talvez ela tivesse alguma razão. A verdade é que não suporto a ideia de que carrego pra sempre um carimbo que ele tenha escolhido. Velho escroto.

Quando eu era criança, achava o máximo aquele cara. Uma vez minha mãe cortou meu cabelo por causa de piolho e eu entrei numa depressão medonha, não queria nem ir à escola. Ele me mostrou uma foto da princesa Diana e olha que legal: ela tinha os cabelos curtos! E o nome parecido com o meu. “Seria uma coincidência, Ártemis? Quer apostar que na próxima semana todas as meninas estarão com os cabelos curtos, para ficarem iguaizinhas à minha princesa Ártemis?“. Velho desgraçado. Elas estavam mesmo, todas com o cabelo curtinho. Todas piolhentas também. E eu achando que tava lançando moda. 

Eu sempre fui magrelinha e branquela, meio doente. Não tinha aqueles lindos olhos da princesa, nem seus cabelos dourados, mas o nariz horroroso era igualzinho. Eu andava e me portava como uma princesa, cabelos pretos como Branca de Neve, olhos enormes de Pocahontas e filha de um Ali Babá que por si só já valia os quarenta ladrões. Todos me viam quando eu passava. Eu só não sabia que os comentários gerais eram “olha, não é a filha daquele cara?“. Como eu acreditava que era admirada, evitava os olhares, aprendi a fugir. Estou botando em prática agora, o maldito barbudo foi embora. Mas ele, como os outros, não me admira nenhum pouco. A diferença é que agora eu não tenho mais as mesmas ilusões.

Preciso voltar pro prédio, comer todo aquele sorvete antes que derreta e chorar até de manhã, pra ver se descubro como pagar a luz e o aluguel do mês, antes que o barbudo volte. A deusa vai caçar o que, pra alimentar quem?

Sou feia, mas sou uma flor. Furei o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio e até fugi da emboscada do barbudo, mas até quando? Preciso dar um jeito, não posso fugir pra sempre. E vaguear a praça com os velhinhos e prostitutas não é o final feliz que pretende a princesa Ártemis.

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