13 de janeiro de 2013

[101] Episódio piloto: O pó, o velho.


O céu cinza, a estrada cheia de pó, os canhões cheios de cinzas, as cinzas dos corpos espalhados, o pó da alma humana. Tiros. Gritos. Os clarões que vêm do céu aqui não são das estrelas. Os gritos aqui não são das crianças brincando nas ruas. As bolas daqui não são de vidro. A correria não é das brincadeiras. O amor aqui não existe.
- Acorda soldado! Grita o chefe do pelotão da força expedicionária brasileira para o soldado Öcsi.
O olhar do soldado percorre o morro, os clarões das granadas, os gritos dos soldados atravessados por tiros, o sangue que escorria do uniforme e sujava de vermelho a terra escura do campo de batalha.
- Cuidado soldado! O tiro, o som, a bala penetrando a carne do companheiro, o corpo caindo sobre os braços do soldado. O fôlego se perdendo, a respiração dificultada pelo ar rarefeito da altitude do morro. O olhar assustado. A mão que levanta e vê o vermelho do sangue na mão preta de graxa.
- Matheu, aguente firme, não nos deixe.
- Não consigo, Célio, meu corpo dói, minha alma dói, é meu fim, diga que lutei.
- Não, Matheu, aguente, vou chamar o médico do pelotão, calma amigo.
- Diga, somente diga, lutei, e foi por amor. Adeus amigo.
- Não, não amigo! Desespera-se o soldado Öcsi.
- Médico, por favor, doutor corra! Médico, médico, socorro.
- Não!
Os olhos se fecham, os suspiros cessam, o corpo morre, a alma se vai. Célio sacode o corpo do amigo e grita em vão.
- Amigo, não! Volte, amigo, estamos aqui. Célio começa a chorar, e desesperado grita o amigo.
- Matheu! Não, não!

Célio, deitado em sua cama, abre os olhos, as pupilas se dilatam com o sol forte que transpassa a cortina do quarto. Seu olho percorre o quarto. As cortinas brancas pesadas, levemente se movem com a suave brisa do vento, o vento empurra o pó das cortinas, o pó das cortinas se mistura com os feixes de luz branca que atravessam o quarto; o quarto iluminado pelo feixe de luz e pó, o quarto com suas paredes cor de oliva, cuidadosamente pintadas por Célio e por sua esposa Elizabeth; as paredes do quarto que seguravam os quadros, pendurados por Célio sua esposa e seus filhos, quadros onde se viam lembranças, memórias, família, luz e pó. Memórias da guerra, de seus pais, de seus filhos, de seu casamento, de seus amigos; uma vida, diversas imagens.

Célio se levanta. Com a dificuldade de quem já tem mais idade, se arrasta, vai até o banheiro, lava o rosto, se olha no espelho, escova os dentes, se olha no espelho, toma seus remédios para pressão alta, se olha no espelho; se olha no espelho e não se vê. Volta para o quarto, abre o guarda-roupa, de tom marrom bem escuro, que sua mulher escolhera a mais de 20 anos atrás. Abre a porta e olha seus ternos velhos, cheios de pó, e luz, a que seus olhos produzem toda vez que as lembranças dos momentos que os ternos foram usados cuidadosamente se pintam em sua memória:
“A vida é cíclica” pensa o velho guerreiro. “A vida é cíclica pra quem vive, e pra quem já morreu?” pergunta o velho a seus ternos. Célio arrasta-se sem muita dificuldade, dá as costas ao armário, anda até a sala, com dificuldade agarra um disco de vinil, coloca na vitrola: “Cíclico e infinito, só Ravel” com esse pensamento Célio coloca para tocar...


Flauta:
Ele retorna ao seu armário coloca um terno Italiano verde, bem alinhado, feito no ano passado para as comemorações do exército brasileiro, para suas ações na segunda guerra mundial; mais uma vez ele seria homenageado. “Cansam-me tantas comemorações do passado, o que será do futuro, o que será quando morrermos todos, o que será da memória, o que terão de orgulho, o que farão para orgulhar-se? Chorarão sobre minha lapide e não mais terão motivos de orgulho vivo para comemorarem nesta terra, chorarão a morte do orgulho?”

Clarinete em Si bemol:
Após vestir-se, Célio desce com dificuldade as escadas. “mais uma vez quebrado o maldito elevador, já me relocaram por causa desta porcaria, arrumar não arrumam?” Ele enfim alcança o hall social do edifício, sai do prédio, não diz bom dia, olha para o alto do prédio. “Cinza, ranzinza cinzas, do velho cinza do prédio, tédio, meu tédio cinza, paredes cinza que guardam minhas cinzas, velhas cinzas cinza, tão triste o prédio, tão sozinho o velho” Célio dá as costas ao prédio e, de repente, sem pestanejar, cospe no chão: “Verdammt, diese teufel gebäude

Fagote:
Célio, o velho, chega à padaria: “Um sanduíche de mortadela”.
“Um sanduíche de mortandela senhor Zélio”
"Ahahaha". Célio Ri com gosto do atendente da padaria, que nunca consegue acerta-lhe o nome, nem do embutido, nem o seu.
“Quantas vezes, jovem, terei de dizer que non é Zélio, o certo é Célio”. “ja” Célio “ja”.
“Um dia acertarei de primeira senhor, acredite, um dia acertarei de primeira”
“Aguardo ansioso por este dia meu jovem” completa o velho.
“Chegará, bom, aqui está seu sanduíche de mortandela”
“Chegará “ja”, mas pelo vista demorará non” termina o velho antes de começar a comer o seu sanduíche de mortadela.
Come e também toma o seu café, como ele fazia religiosamente ao acordar.

Oboé d’amore
Célio caminha em direção a praça próxima ao edifício. Ele costuma ir todos os dias para sentar e conversar com alguns senhores que gastam os dias relembrando
momentos, e jogando xadrez nos bancos da praça. Esta era uma de suas poucas e boas atividades do dia, e sem dúvida a que ele gostava mais: “Xadrez é jogo de Inteligência, Genaro, jogo de inteligência “ja” comenta com um de seus parceiros de jogo, “que seja que seja, jogue logo, não aguento mais esse jogo horroroso, quando morrer, vou perguntar a São Pedro: tem xadrez no céu?” diz o velho “Se ele disser que sim, eu desço para o inferno” Os senhores ao redor dos dois riem com o comentário de Genaro, um dos senhores mais velhos do grupo. “Non, logo saberemos se tem ou não xadrez no céu Genaro, você está pela hora da morte mesmo”. Todos riem ainda mais.

Trompete e flauta:
Após algumas jogadas, e muito tempo sentado na praça, ele retorna para casa a passos lentos. Sobe o lance de escadas. Abre a porta de casa. Vai até a cozinha e vê se há algo na geladeira para comer. Ao abrir a geladeira vê um grande e branco pote de sorvete napolitano: “Frio, tão frio como o velho que vai comê-lo” Célio pega uma taça, coloca três bolas do sorvete, cobre com uma grossa camada de cobertura de chocolate, vira-se, vai até o armário, pega uma lata de leite condensado: “Olá querida”. Abre a lata esparrama o leite condensado na lata, lambe o resto de leite condensado que ficou em seu dedo. Guarda o pote e a lata na geladeira. Caminha até a sala, olha para sua poltrona preferida: grande, velha, bege clara, limpa, aconchegante, com rebites de madeira marrom claro, um cobertor leve de seda pendurado em um dos braços da poltrona, pó há pó na poltrona, virada para a direção da janela. Antes de sentar ele dá alguns passos até a janela e abre as cortinas; seus olhos ardem com os raios de sol, os leves raios de sol que antecedem a penumbra. Mais alguns passos e a vitrola volta a tocar a melodia do início da manhã. Célio se senta: “Santa Diabete, rogai por nós, amém”. Come. Come. Olha pela janela. Termina. Célio cai no sono.

6 comentários:

  1. Ravel, a música, o pecado, a cobiça, a gula, a ganância... Um momento de leitura absolutamente sinestésico! Eu e a flauta e um terno não italiano... Um decálogo!
    Um abraço pra ti Nuno!

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  2. Muito bom, viver cada dia intensamente

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  3. somente pra deixar registrado o que comentei lá no grupo: adorei o balanço do texto ao ritmo de Bolero. Uma bela estreia, meu caro!

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  4. Ps: O comentário cima pertence a minha doce, e distraída, mamãe que usou minha conta no google para comentar!

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  5. Uma experiência, certamente, sem medidas... estou no ritmo de Ravel até agora. Cada vírgula, cada ponto, cada suspiro... Bom dia Sr. Zélio! (um dia desses eu acerto) Belo trabalho Nuno!

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  6. "O Matt disse uma coisa muito importante: a verossimelhança da vida de um homem excentricamente experiente, em meio ao cruzamento com o passado que rompe os limites e conduz o seu futuro. Sem dúvida é uma produção que promete, aguardo então os demais capítulos, a fim de que eu possa me deliciar a cada momento com o surto da sua tão brilhante criatividade e disposição para nos agraciar com o seus estilo literário originallllll....parabéns querido! Milll vezes parabéns!

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