- Acorde filho, hoje é seu grande dia. Acorde logo rapaz, hoje você
passará de menino para homem. Acorde meu filho, meu grande filho.
Os sons da voz rouca do pai fazem com que o jovem rapaz acorde. Seus
olhos se abrem e sua primeira imagem é desse senhor, parado à sua frente como
uma estátua de praça pública, alta velha carregando no lugar do rosto uma
carranca, uma carranca de olhar sério e penetrante, que ao mesmo tempo assusta
e fascina o observador; suas roupas como não poderiam deixar de ser, compunham
o ar pesado e solene do grande momento, ao invés do costumeiro pijama branco
com listras que seu pai usava todos os domingos, a roupa era a que ele costuma
usar para momentos de grande importância: o terno.
O terno verde musgo bem escuro,
tão escuro quanto suas intenções, o sapato preto bem lustrado, e o quepe
também verde, mas não tão escuro quanto o restante do terno.
O garoto se levanta e vai com ânimo ao banheiro. Lava o rosto, se olha,
se vê, se contempla e se felicita por fazer o que é certo, por dar orgulho ao
pai, por ser motivo de orgulho para a família, por ser orgulho para si próprio,
por ser coragem, por ser homem. Célio, este jovem rapaz, se arruma, põe sua melhor roupa, o terno azul escuro, passado
e engomado esticado sobre a cama. Ao parar ao lado da porta, sua última olhada
ao redor do quarto, ele caminha até a janela e abre as cortinas.
O sol da manhã avança sobre seus olhos, fazendo-os se espremerem; ao
abrir os olhos, a rua iluminada, com uma dezena de jovens deixando suas casas,
todos com seus ternos bem alinhados, e seus pais ao lado, como que numa
procissão, bandeiras em punho, punhos cerrados levantam-se, as mãos, as mãos
dos vizinhos se apertam, os corações apertados batem violentamente, as mãos
voltam frias e guardam o medo e a esperança , eis que a boca exprime os
primeiros desejos de boa sorte, os primeiros beijos, as eternas despedidas. Ao
virar-se de sua contemplação, o rapaz, o jovem rapaz, observa o caminhar da luz
ao preencher seu quarto, ao iluminar o terno, o meio termo entre coragem e
temor.
Veste-se, caminha até a sala, e para diante do pai sentado que observa a
rua e que leva à boca um charuto preto, pesado e fumacento, a mãe vindo
lentamente da cozinha trazendo pequenos
e suculentos pedaços de Knodel e muitas lágrimas para o filho que partia.
Duas de suas irmãs sentadas na sala paravam para ver o velho irmão que em
alguns minutos partiria.
Acompanhado dos pais Célio sai pela rua e, assim como seus amigos, recebe
os cumprimentos e desejos de boa sorte dos vizinhos, dos amigos e de todos os
demais moradores da Cidade, que parou tudo para acompanhar a saída dos jovens
combatentes, que atravessariam o oceano deixando suas casas para trás, para
lutar, lutar pela liberdade, pela honra e por seu país.

Chegando ao porto, o jovem rapaz pega a longa fila, mas nunca só, sempre
acompanhado de seus pais orgulhosos. Chegando à ponta da fila, vê o Primeiro
e Segundos-tenente da brigada recolhendo as assinaturas dos combatentes, assina
seu nome na lista de combatentes que faziam parte do primeiro escalão que
partiria para a Itália; saindo do armazém preparado para receber os combatentes
a primeira imagem ao fundo era a do grande e imponente General Man, o grande homem que levaria todos aqueles meninos para
se tornarem homens, demonstrando sua honra e coragem. Célio vira-se para seus
pais e dá um último sorriso, abraça-os e segue em direção a grande rampa, que
leva a entrada do navio; no topo do navio, a imagem do grande homem que
comandaria o seu escalão, Zenóbio da Costa, agora seu novo general, seu novo pai.
Os olhos se enchem de lágrimas, o jovem rapaz vê seu país ficando para
trás, eis que a luz do céu fica cada vez mais forte e forte e ofusca seus
olhos, incomoda seus olhos, dói e Célio acorda com a luz forte do sol que vem
da janela; é cedo, o velho senhor dormira na poltrona da sala, e seu sono
pesado, de sonhos leves, não o deixou acordar.
Saxofone tenor
Célio se levanta sentindo dores, o velho sente dores, dores fortes que
doem em todos os cantos de seu corpo, incluído suas costas cansadas. Ele
caminha até o banheiro, toma um banho, escova os dentes, penteia o que lhe
restou de cabelos brancos.
- Fios inúteis, não entenderam ainda que deveriam ficar na cabeça e não
no ralo? Voltem para o seu lugar ou nuca mais os aceitarei de volta... Tudo
bem, não os quero de volta mesmo, fios desobedientes. Cada fio a menos, uma
preocupação a menos, menos tempo, menos vida, quando não houver mais fios, não
haverá mais vida, nem sequer tempo; pois meu tempo já terá passado, e logo eu
serei passado.
O velho caminha pelo apartamento ainda pouco iluminado, abre janelas e
cortinas, da espaço ao vento e luz, mas tenta evitar os gritos das crianças e o
pó da rua.
- Obrigado, querida rua, sua sutileza se mede com pó, mas pó eu já tenho
bastante; afinal quem é pó como poderá tornar-se pó um dia? E de que me adianta
reclamar vou sair, vou velhoarar com
os velhos velhoaradores.
O velho cruza a sala, passando com cuidado pelo tapete que sua esposa
mandara trazer do Iraque, lembrança do período de fartura de sua família, e que
seguindo ainda após todos esses anos de infinitos avisos o velho continuava a
tomar cuidado com a peça rara e cara de sua amada esposazinha.
- Cuidado! Não pise assim, cuidado! Ainda me lembro da unglückliche falando do persa, persa que
por sinal eu piso, pois, tapete é, fosse gato eu chutaria o bichano para longe,
assim como a bunda da dona.
O velho se arrumou, bem alinhado, com humor detestável e foi velhoarar.
Trompa, 2 flautins e celesta
Sentado sozinho em um canto da praça, enquanto seus companheiros não
chegavam, Célio aproveita para observar a rotina lenta da praça; repentinamente, ele vê se aproximando com um caminhar perdido e preguiçoso o jovem o rapaz da
padaria, que viria e o saudaria educadamente, mas lhe chamaria pelo nome
errado, como sempre.
- Seu Zélio. O senhor por aqui, seu Zélio, o que faz o senhor com esse
traje de gala, sentado aqui sozinho na praça seu Zélio, oia, só o senhor seu Zélio;
aliás eu tenho que contar pro senhor to
pensando em tá voltando a tá estudando de tanto que o senhor fica falando que
eu tenho que tá procurando uma escola pra tá aprendendo mais. O que o senhor tá
fazendo que num passo na padoca.
- Sim, meu jovem, estude, sabe, que você tá precisando; todos nós
precisamos de conhecimento e outros ainda precisam também de paciência. Pensei
em passar na padaria, mas pensei em vir mais cedo para a praça e aproveitar o
silêncio, enquanto os velhos não chegam, por isso estou aqui velhoarando
solitariamente.
- Entendo seu Zélio, curioso isso que vocês fazem.
- Sim, pode ser chamado de curioso, não fosse trágico.
- Trágico?
- Sim, velhoaramos pois não há mais vida a se viver, meu rapaz, e nesta
fase da vida, os medos e desgostos nos afligem como nunca antes na vida.
- E o senhor tem tanto motivo pra desgostar da vida assim seu Zélio.
- Sim, todos temos, mas conforme a idade chega o que se percebe é um
aumento substancial do peso que os sentimentos negativos e as más experiências
exercem sobre as costas cansadas dos velhos. Neste momento vemos as tristezas
da vida não mais como algo a ser superado, não há tempo, pois não é tempo de
superação, vemos o conformismo como saída no qual se apoiam todos nossos
fracassos e, ainda para mim, que sofri para além do que eu mesmo poderia ter me
causado, o peso se lança ainda pior, é viver como Atlas só que ao invés do céu, levo às costas o peso do inferno de
uma vida infeliz; nesta vida onde até
meus dentes me mordem.
- Que chato seu Zélio. Seu Zélio? Seu Zélio? Tudo bem com o senhor?
Rápido como o apagar da chama de uma vela, escuridão toma conta
da visão de Célio...