"E, se sua mão direita te leva a pecar, corte-a e
lance-a fora.
É melhor perder uma parte do seu corpo do que ir ele todo para o
inferno.”

– Otávio – sempre falava meu nome entre um sorriso que zombar dos meus receios ao
encontrá-la sob essas circunstâncias – Já pedi seu vinho. Estava certa de que
nos encontraríamos hoje.
Nosso contato havia se tornado um misto de prazer e incômodo. Na sua parte boa, eu podia apreciar Hermínia, olhá-la bem de perto enquanto seus olhos estavam ocupados demais em dar conta de toda movimentação ao nosso redor. Na parte ruim, sentia que não lhe tinha mais o que falar; já tinha esgotado algumas histórias divertidas do seminário e o ofício de um clérigo, convenhamos, não costuma despertar um interesse mais proeminente nesses tipos mais urbanos. Em silêncio consumia-se a maior parte do tempo que compartilhávamos.
– Veja só,
Otávio. Há algumas semanas, quando nos conhecemos, estávamos os dois
fantasiados, lembra-se?
– Lembro-me de sua
fantasia; eu, porém, vim do jeito que aqui estou.
– Não seja hipócrita. Ou
você é mesmo daqueles que se propõe a fazer contanto que nunca se fale sobre o
que foi feito? Esperava mais de você...
Senti
minha face ficar corada e duas gotas de suor me escorreram uma por cada lado do
rosto. Engoli a seco. Não sabia que esta mulher tinha também o poder de me
fazer sentir como um menino com quem a mãe ralha ao descobrir-lhe um segredo
travesso.
– Se
quer ouvir da minha boca que hoje é a primeira vez que venho te ver sem estar
usando clesma, está dito – tomei coragem e longos goles de vinho – E fica dito
também que a retirei por sentir no meu pescoço o incômodo de uma coleira. E, de
brinde, ainda me livro daqueles que me olhavam como uma pessoa exótica.
Desapontei-a? A graça de minha companhia estava justamente nisso?
– Oh,
tão poucas vezes conversamos e este seu tom de drama já me incomoda. Mas, se é
inseguro a este ponto, saiba que ainda o aprecio. Talvez até mais. E, de fato,
aquilo parece mesmo uma coleira. Não lhe falei antes para não influenciar a uma
retirada precoce.
Algumas horas depois
estávamos na pequena sala do meu apartamento. O vinho me fazia despreocupado
com qualquer possível conseqüência de tê-la levado para um pernoite, mas ela –
e assim nunca lhe tinha visto – encolhia-se na poltrona enquanto eu
providenciava que meu pequeno oratório lhe servisse de quarto para dormir.
– Um padre que traz uma
mulher pro seu apartamento e é amigo de um casal gay... – e tomava um certo
cuidado pra falar baixo.
– Casal gay, Hermínia?
– Sim, não conhece os dois
rapazes que vieram no elevador? Pois então.
– Na verdade, conheço um
só. Encontrei-o na capela um dia, ele ainda não se vira muito bem na Cidade.
Ajudei-o a voltar pra cá. Mas não duvido que sejam gays, duvido que sejam um
casal. Aquele mais robusto tinha um olhar muito frio, sabe?
– Sim, percebi. Foi uma subida
de elevador das mais tensas – e dirigia-se ao oratório, sinalizando que já se
ia deitar – Um padre e uma mulher, um rapaz e outro rapaz, todos se olhando de
soslaio, todos secretamente julgando. Isso me dá sono. Boa noite.
Deitei-me com um sentimento de decepção. Não fui capaz de
rezar, sequer fui capaz de dormir antes de algumas horas em que a imagem de
Hermínia insistia em se projetar sobre minha imaginação. Já devia ser quase
manhã quando ouvi um barulho de porta batendo e resolvi verificar. Ela
havia deixado o apartamento. Em cima da cama improvisada, um bilhete:
“Otávio,
não pude dormir direito
com esse homem pendurado sangrando e tive a sensação de aquele que segura o
próprio coração estava olhando pra mim.”
Senti
raiva. Tê-la em meu apartamento daquele modo era o mesmo que não tê-la. E por
mais que eu não pudesse admitir nem mesmo pra mim, tudo que eu desejei aquela
noite foi tocá-la. A raiva era a erupção desse desejo tão intenso. Enquanto
minha mão esquerda amassava o maldito bilhete e a cabeça imaginava cada
milímetro do corpo feminino muito branco e o tato em cada pelo seu, a
mão direita me saciava o desejo febril em movimentos fortes que me faziam suar.
Tive
então a sensação de que agora todas as imagens do oratório olhavam pra mim e
sentia-me profundamente envergonhado. A mesma mão que ergueria a hóstia algumas
horas adiante estava suja, meu corpo jazia patético. No verso do bilhete
amassado, descobri o telefone de Hermínia. No fim, a noite de fato mudara tudo:
dali em diante, nada mais poderia ser imputado ao acaso, tudo dependeria de um
ato inegavelmente volitivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário