Em Portugal

O lado prático e real do
inventário ficava relegado a segundo plano. Eu não queria saber de papéis,
documentos mortos de vidas tão vivas ainda dentro de mim. Paolo, me observava
sem palavras. Nada era mais acolhedor e carinhoso que aquele pai sentado na
cadeira envelhecida, rangendo no ir e vir do balanço, ouvindo meus suspiros e
ais de tristeza diante de tantas reminiscências. Uma mistura de Casimiro de
Abreu e Drummond nos poemas sobre infância, abordados com uma mistura de
inocência e realidade que me deixam com água na boca.
O telefone quebra o silêncio.
Senhor José Manoel, advogado da família. Hora de uma verdade já esquecida:
bens. Quem dera fossem mensagens além-Terra com notícias dos meus amores. Ri de
mim mesma com tamanha bobagem.
- Sim, amanhã, as 10. Íris já
está aqui faz três dias a esperar por tua ligação.
- Pai, diga ao senhor Manoel que
resolva tudo o mais rápido possível, preciso voltar ao Brasil.

Sentei-me ao seu lado no banco perto da
grade do antigo galinheiro e, abraçados, choramos a ausência. Paolo,
envelhecido, precisava de apoio, de companhia... O que eu faria para ajudá-lo?
Difícil, abandoná-lo à sorte, deixá-lo sozinho naquele lugar quando tudo fosse
resolvido.
- Pai, já pensou o que vai fazer
quando eu voltar? Não quero vender a marcenaria nem a chácara, o senhor precisa
de trabalho e de um canto para morar já que não pensa em deixar Portugal.
- Filha, se me deixares uma
pequena morada, mesmo distante do campo, eu me arranjo. Não nesta casa. Podemos
comprar algo mais simples, mais perto do comércio. Trabalhei na padaria de
João. Lembra-te dele? Amigo do teu Wlad... – Percebeu meu espanto. – Perdoe-me,
pequena, não deveria falar deste contigo, quanto mais neste momento de tantas
emoções para ti.
- Não tem problema. Wladimir e eu
nunca mais nos vimos desde a última separação. Foi um tempo difícil. Eu
precisava estudar, queria crescer e virar mundo e ele só pensava na boemia e nas
alegrias ciganas da estrada. Mas como está João? Me lembro dele quando
estávamos ainda na escola, éramos tão crianças!
- Vida simples, querida. Assumiu
a padaria do pai e casou-se. Tem dois pequenos. Dois e seis anos. Poderíamos
fazer-lhes uma visita. O que acha?
- Como quiser. Amanhã depois da
reunião do inventário, está bem pra você?
- Sim, estar contigo e te levar a
passear sempre estará bem para mim...
Silenciamo-nos diante do
descompasso de Paolo. Ele sabia que a minha volta ao Brasil seria uma separação
inevitável porque me estabeleceria de vez aqui e ficaríamos separados, não para
sempre, mas bem distantes por um tempo de não-sei-quando.
- Seria bom que você viesse
comigo.
- Não daria certo morar perto de
uma família que me desteta e me renegou ao casar com tua mãe.
- Sei lá, acho que Eva já o
perdoou.
- Eva... Saudade de quando eu era
pequeno e ela a cuidar de mim com tanto carinho. A diferença de idade a tornou
um pouco minha mãe. Fiquei a chorar durante toda a cerimônia do casamento...
- Pai, por que não tenta um
contato com ela. Telefona...
- Quem sabe um dia... Quem sabe
um dia... – Saiu andando em direção à marcenaria.
[...]
Chegada a hora de resolvermos os
problemas burocráticos de uma vida inteira de pessoas que tanto amei. Os bens
materiais eram importantes, claro, hipocrisia dizer o contrário. Mas, no
entanto, a situação óbvia da quebra de aliança entre mim e Paolo estava sendo
prevista naquele instante em que o envelope se abria e o advogado lia o que já
sabíamos. O que não havíamos pensado antes era na dor que sentiríamos depois
que cada um fosse para seu lado e, se não nos víssemos mais, a eterna sensação
do onde-quando-como, um do outro, o vazio do querer estar e o afastamento do
não poder.
Terminada a reunião, a
autorização da venda da chácara e da marcenaria. Os outros terrenos ao redor da
chácara resolvemos deixar para depois. Não havia necessidade de vender tudo. Se
Paolo não se acostumasse na cidadela onde João mora, poderia voltar e construir
ali uma casinha para ele. Paolo é homem simples de campo... A cidade pode
assustá-lo. A arte de trabalhar a madeira, fazer balanços, escorregas,
cavalinhos, era herança da convivência com meu vô. Pouco tempo, mas suficiente
para aprender a ser.
Chegando a casa, Paolo emudecido,
cabisbaixo... Eu o abracei e, carinhosamente, comecei a beijá-lo e a rodá-lo pela
sala. Brincamos. Eram cócegas e gargalhadas, corríamos pela sala como crianças
até cairmos cansados no sofá. Um momento de alegria para espantar a certeza da
separação breve, mas o fortalecimento de uma relação saudável que nos fazia
família, uma família de dois, uma família que cabia num sofá, mas uma família.
A visita à casa de João ficara para depois.
Tempo de espera. Um tempo curto
para organizar as coisas e reorganizar as ideias. Meu mundo se desfazia aos
poucos para se reerguer em outras bandas. Logo estarei de volta. Meu
apartamento simples no Edifício Cinza, minha escola, meus alunos, os amigos que
me esperam, meus poemas... minha marca
em um lugar só meu.
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