4 de setembro de 2013

[403]Episódio 11: Passagem

Foi-se o tempo em que as coisas eram simples como um café feito no fogão a lenha... Simples e saborosas.

Existia uma arte na feitura do café, em seu preparo e até mesmo no saboreá-lo.

Coisas da roça.

Ao redor da lamparina a querosene, sentados  enrolando seus cigarros de palha, os matutos  esperavam pacientemente a lenha arder e queimar, fazendo a água entrar em ebulição para depois apreciar o  denso líquido preto escoar pelo coador de pano.  Suas canecas já preparadas eram postas abaixo do  mesmo e na hora do beberico, o aroma se misturava  ao sabor. A prosa era animada e circulava em torno  do dia de labuta no roçado. Tudo girava em torno do tempo. Um tempo certo. Medido. Pacientemente semeado e necessário. Um tempo pra tudo amadurecer.

Mirella voltava daqueles dias em sua terra natal cheia de reflexões.

Alguma coisa em seu íntimo mudara. Aquela sensação de estar em câmera lenta estava impregnada em sua alma. Apesar do considerável desenvolvimento da cidade, seus pais ainda cultivavam a mesma vidinha simples de outrora. O cenário bucólico de sua infância não fora destruído pelo progresso e isso a deixava feliz.  Durante sua estada, em meio a tanta simplicidade, desejou intensamente que sua vida assim o fosse também. Pelo menos naquele curto espaço de tempo em que ali se encontrava, isso seria real. Mas (sempre existe um “mas”) precisaria voltar para sua vida cosmopolita.

Já era noite e o ônibus parecia compactuar com seu estado de espírito. A viagem de volta que, em geral, é mais rápida, transformava-se numa longa e perpétua caminhada.

Suas reflexões a agitavam mentalmente e saber que enfrentaria o cotidiano com aquelas derradeiras palavras de seu pai, a consumiam internamente.


Sentiu um frisson, de novo aquela sensação de que borboletas revoavam em seu estômago.

Houve tempo para visitá-lo no hospital assim como houve tempo para sair de lá cheia de mágoas mal resolvidas. Estar com D. Miriane amolecera seu coração. A saudade somada ao acolhimento que só as mães sabem dar dissipara toda revolta sobre os acontecimentos de outrora. Com esse sentimento de perdão e peito aberto, convencida a apagar qualquer dúvida sobre as posturas rígidas e ofensivas sofridas, se encaminhou ao encontro com seu pai no Hospital.

Deitado sobre o leito frio de um hospital público, em condições precárias, estava o corpo debilitado de seu progenitor. Apesar de tudo, era seu pai e não podia deixá-lo ali. Faria um ajuste em suas economias. Decidiu por transferi-lo. Tomou algumas providências e transferiu-o para uma clínica particular onde poderia ser atendido com mais atenção e cuidados. Foi alertada de que o estado dele era delicado. Talvez não passasse daquela noite. Por uma inexplicável providência da vida, para aqueles que acreditam em coincidências, ele passou bem e obteve até uma melhora significativa. Sua melhora foi tão visível que houve tempo suficiente para que resmungasse e soltasse impropérios por estar naquele lugar rico que não poderia pagar. Ficou ainda mais furioso quando soube as custas de quem ali se instalara.

A vida em nada lhe mudara o caráter e o gênio.

D. Miriane tentava acomodar a situação mediando os sentimentos de ambos. Mirella já esboçava arrependimento. Não de tê-lo transferido, isso não, qualquer ser humano merece uma morte digna, dizia ela. Mas as atitudes rancorosas e egoístas de seu pai deixavam-na cada vez mais triste e todo aquele clima de perdão e amor que obtivera nos dias anteriores se dissolvera naquelas palavras rudes e ofensivas dirigidas a ela.

Em seu peito um peso enorme a oprimia. Sentimentos confusos de raiva e compaixão trocavam de lugar como brincadeira de roda. Em frangalhos saiu do quarto, desceu as escadas do andar e foi até a cantina da clínica para comprar cigarros...

Dirigiu-se à rua e sentou-se num banco em frente a entrada principal, num pequeno jardim que alegrava a arquitetura fria do local. Fumou aquele cigarro como se aliviasse sua fome de gritar e esbravejar. Levantou-se e caminhou um pouco pelo chão de pedrinhas chutando uma e outra até que, num rompante, soltou um grito de agonia caindo logo depois em compulsivo choro. Não percebeu o tempo passar. Recomposta, voltou e, ao chegar em frente à clínica, avistou sua mãe aflita andando de um lado para o outro, provavelmente a sua procura. Um frio arrepiou sua alma. Sabia o que iria encontrar na volta ao quarto.

No leito, seu pai descansava. Olhos cerrados com ar de quem dormia. Sua fisionomia retratava seus últimos sentimentos sofridos nesta encarnação.

Tocou-o nas mãos e sentiu sua pele enrudecida, ainda quente. Nada falou.

Enterrou seu pai e, resoluta, com ele, todo um passado de brigas e ódios.

Na rodoviária, beijou os olhos úmidos de sua mãe com promessas de um retorno em breve.

Sua história, na verdade, não podia ser enterrada assim, ela sabia disso. Ninguém consegue enterrar o passado. De alguma forma ele sempre retorna.

Os pesadelos podiam confirmar esta tese.

Ao chegar ao Edifício teve a sorte do elevador estar funcionando. Abriu a porta do apartamento e jogou-se no sofá, exausta. Seu cansaço era enorme mas não a impediu de perceber que mudanças sutis haviam ocorrido naquele prédio nos poucos dias em que estivera ausente...

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